Por que a crise não nos afeta tanto?

O mundo mudou e o Brasil aproveitou. Graças ao agronegócio, à estabilidade e … à China

O Brasil está passando bem por essa turbulência porque a crise reduziu e encareceu o crédito e o Brasil não precisa de crédito externo. Não precisa porque as exportações decolaram nos últimos anos, puxadas pelo período de excepcional crescimento da economia mundial, que demandou produtos nos quais o Brasil tem competência.
De 2003 até aqui, o superávit do comércio externo trouxe para o país cerca de US$ 175 bilhões. O Banco Central comprou a maior parte desses dólares, com os quais engrossou as reservas ? hoje passando dos US$ 160 bilhões ? e matou dívidas. Hoje, a dívida externa total (pública e privada) é só um pouco superior às reservas. E a dívida externa pública é mais ou a metade das reservas. E são dívidas de médio e longo prazo contra reservas em caixa.
Ou seja, mesmo que a crise do crédito mundial fosse pior e o Brasil não conseguisse tomar um dólar de financiamento novo neste e no próximo ano, simplesmente não aconteceria nada. Há por aqui dólares suficientes para pagar todos os compromissos relacionados à dívida externa. O setor público, em especial, é credor em dólares.
Como a economia mundial não vai parar de uma hora para outra e como o Brasil exporta para a parte do mundo que deve continuar crescendo (asiáticos e China, em particular), é razoável supor que continuarão entrando os dólares necessários para pagar as importações. De novo, não há necessidade de tomar dólares emprestados.
Nas crises internacionais anteriores, até 1999, a situação era exatamente o contrário. O mundo não estava em expansão forte, o Brasil tinha déficit no comércio externo e no conjunto das transações com o exterior, mais dívida elevada e reservas baixas. Ou seja, a todo ano, o país precisava ir ao mercado internacional tomar dólares emprestados para financiar seus compromissos internacionais. Na crise, o crédito encolhia e os juros disparavam.
Resultados: o governo precisava arrochar todos os seus gastos para comprar os dólares e amortizar a dívida a cotação do dólar subia, o que aumentava a dívida em reais vinculada ou indexada à moeda americana dívida maior levava a maior gasto público com juros dólar caro aumentava a inflação, o que levava a alta de juros, também necessária para atrair dólares externos aumento do gasto público exigia aumento de impostos, tudo levando a menos crescimento.
É por isso que, antes, a cada crise correspondia um pacote de medidas do governo. E agora, o governo simplesmente não faz nada. Ou faz: o presidente Lula e o ministro Guido Mantega alardeiam que a crise não nos afeta em nada e que devemos isso à sua administração.
Mesmo?
Em primeiro lugar, convém notar que não é apenas o Brasil que passa bem pela crise. A prosperidade mundial aumentou a demanda por produtos básicos e comodities e, assim, puxou as exportações de todos os emergentes. Assim, na mesma medida em que o Brasil se beneficia do crescimento do consumo e da alta dos preços mundiais do minério de ferro, soja e carnes, por exemplo, o Chile com ganha com o cobre, a Venezuela com o petróleo, a Argentina com soja, trigo e carne bovina, o Uruguai com carnes e por aí vai.
Houve uma mudança estrutural no comércio global. Entendia-se, de um modo simplificado, que os países emergentes estavam condenados ao déficit nas suas contas externas, pois seus produtos de exportação (primários) tendiam aos preços baixos, enquanto suas importações (de industrializados, com valor agregado e tecnologia) ficariam cada vez mais caras. Assim, esses países sempre seriam dependentes de empréstimos externos.
Mas essa relação de troca se inverteu. As comodities, produtos básicos e agrícolas, sofreram uma forte alta de preços internacionais. Mesmo com as turbulências das últimas semanas, os preços de alimentos registravam, em agosto, uma alta de 30% em relação ao mesmo mês do ano passado, segundo a tabela da revista Economist. A Vale do Rio Doce chegou a negociar aumentos de 80% na cotação do minério de ferro que vende na China. Além disso, o agronegócio passou a oferecer produtos com tecnologia e valor agregado.
Isso foi consequência do enorme crescimento da demanda, puxada pelos asiáticos, especialmente pela Índia e, sobretudo, China. Ao mesmo tempo, ocorria outro efeito China, a queda de preços de produtos industrializados de consumo, como os eletrônicos, para citar só um exemplo.
Consequência, países emergentes passaram de deficitários e dependentes do crédito internacional a superavitários no comércio e nas contas externas, com o que acumularam reservas, espécie de seguro anti-crise.
Para essa virada mundial, nós aqui no Brasil não fizemos nada. Para aproveitar a onda, o grande papel foi do agronegócio que se modernizou e se preparou ao longo dos anos 90 e, a partir de 2002/03, estava preparado para vender mundo afora. Também importantes foram as privatizações que geraram grandes companhias exportadoras no setor de minério de ferro e aço.
Mas o maior mérito brasileiro foi a construção da estabilidade macroeconômica, iniciada com FHC e avançada com Lula. Assim, com os dólares em caixa, o real estável e contas públicas em ordem, o Brasil pode passar bem pela crise.
Se a crise externa perdurar, todas as empresas e pessoas do mundo, incluindo as brasileiras, terão mais dificuldade para tomar empréstimo e pagarão mais caro por isso. Resultado, menos investimento e menos consumo.
Mas qual é o cenário para a economia brasileira no ano que vem? O mais otimista é o do governo, crescimento de 5% com inflação de 4%. O mais pessimista? Crescimento de 3,5% com inflação perto de 5%.
Está mais que bom, não é mesmo?
São os benefícios da estabilidade, das reformas e, claro, da China.

Publicado em O Estado de S.Paulo, 03 de setembro de 2007

Deixe um comentário