IGUALDADE NA POBREZA, DESIGUALDADE NA RIQUEZA

. Renda e Bem estar —

Imagine um país com dois habitantes e renda total de 10 moedas, dividida meio a meio. Desigualdade zero, perfeita distribuição.
Imagine agora um país com dois habitantes, mas com renda total de 30 moedas, sendo que o indivíduo A fica com 20 e o B com 10. A renda do rico é o dobro daquela do pobre, mas este certamente está melhor de vida do que os dois igualmente pobres do primeiro país.
Este é o ponto para ilustrar um debate bem atual, a crescente desigualdade de renda no capitalismo global. Trata-se de um fenômeno que apanha países já ricos, como os EUA, e nações em ascensão, como a China. No ano passado, 177 chineses compraram Ferraris zero km por não menos que US$ 300 mil, e isso em um país no qual um salário de 200 dólares/mês é bastante bom.
Enorme desigualdade – mas toda a população chinesa vive melhor hoje do que há 30 anos, quando, antes das reformas econômicas, havia uma ampla igualdade na pobreza. Desde a introdução do capitalismo, cerca de 600 milhões de chineses deixaram a linha da pobreza, processo que continua. Em outras palavras, a China desigual de hoje é melhor que a China igual do passado. Cuba é um exemplo, hoje, de igualdade na pobreza.
Mas há uma forma melhor ainda de avaliar a qualidade de vida. Trata-se de medir o consumo em vez da renda. Digamos que uma família tenha uma renda mensal de 100 moedas, estável durante alguns anos, enquanto a renda nacional cresce a 5% ao ano. Claro que, a cada ano, essa família torna-se mais pobre em relação à média da população.
Imagine, porém, que alimentos e bens de consumo tenham ficado cada vez mais baratos ao longo dos anos. Ou seja, com as mesmas 100 moedas aquela família pode comprar mais coisas e melhorar sua qualidade de vida. Pela medida da renda, terá piorado. Pela medida do consumo, terá melhorado.
Está aqui o fenômeno mais importante do capitalismo global de hoje. Durante décadas, a produção de alimentos esteve em alta e os preços em queda acentuada ? fato que beneficiou diretamente os mais pobres, justamente a parcela da população que gasta parte maior de sua renda com alimentação.
Também aumentou a produção e despencaram os preços de bens de consumo essenciais para a qualidade de vida, como fogão, geladeira, televisão, telefones e, mais recentemente, celulares e computadores. De novo, isso beneficiou diretamente a parte mais pobre da população mundial que não tinha e passou a ter acesso àqueles bens.
Não faz muito tempo, uma linha de telefone não-comercial custava US$ 5 mil no Brasil e era, então, um sinal de desigualdade. Hoje, mais de 100 milhões de brasileiros utilizam celulares igualmente.
Pode haver aí uma desigualdade ? o rico utilizando um aparelho de 2 mil dólares e o pobre com um modelinho usado de 50 reais. Há geladeiras de 30 mil reais e outras de menos de mil. Idem para aparelhos de televisão.
Mas ricos e pobres fazem as mesmas coisas, comunicam-se, preservam alimentos e vêem a Globo. Ou seja, a desigualdade maior estava no início do capitalismo, quando a diferença era ter ou não ter aquilo que melhora a vida. Há desigualdade entre andar de Ferrari e de carro popular usado. Mas é bem menor do que ter ou não ter o carro, este acessível a um número cada vez maior de pessoas, em consequência de uma combinação de preço menor, maior renda e ampliação dos sistemas de financiamento.
A expansão do capitalismo trouxe ao mesmo tempo uma maior desigualdade de renda e uma maior igualdade material e, pois, de qualidade de vida. Claro que o ideal seria combinar as duas igualdades ? Ferraris para todos! ? mas como dizia Deng Xiaoping, é preciso que alguns enriqueçam. O sistema depende dos empreendedores que sabem ganhar dinheiro produzindo bens e serviços.
Vai daí que restam para o governo duas funções principais. A primeira e mais importante é criar um ambiente de negócios favorável ao empreendedor privado, condição necessária para o enriquecimento de uma nação. A segunda é fornecer educação e saúde básica, mas especialmente boa escola, que é a base da ascensão social e, pois, da redução das desigualdades. E escola boa não é como DVD, que fica cada vez mais barato. É cara ? e essa é uma vantagem comparativa dos mais ricos.
Resumo: capitalismo e escola pública de qualidade.

Publicado em O Globo, 28 de fevereiro de 2008

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