O GOVERNO NÃO TEM DINHEIRO, PARA SEMPRE

. O cobertor é curto O governo não tem como aumentar os gastos. Simplesmente porque já arrecada demais e gasta demais Os ministros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm razão para reclamar: passaram este ano a pão e água. Já não têm razão quando esperam um grande alívio para 2004. Vai melhorar, sem dúvida, pelo próprio crescimento da economia, mas o dinheiro público continuará curto. O aperto fiscal deste ano é inédito, conforme mostram cálculos da consultoria Tendências. As despesas primárias do governo central (todos os gastos e investimentos menos o pagamento de juros) devem encerrar 2003 cerca de 13% abaixo do que foi realizado em 2002, descontada a inflação medida pelo IPCA. Pela primeira vez em muitos anos, o governo está efetivamente reduzindo os gastos reais. É um resultado surpreendente quando se considera que o PT e os demais partidos da base governista pregavam o contrário, o aumento do gasto público. Na verdade, continuam pregando, a julgar pelo discurso de boa parte dos ministros. Para eles, 2003 foi apenas uma emergência, um ano para administrar a “herança maldita”. Já em 2004, com a economia recuperando crescimento e um orçamento próprio, começaria o verdadeiro governo Lula. Mas quando se observam os números do projeto de Orçamento da União para 2004, em tramitação no Congresso, não se vislumbra esse alívio. Tome-se o caso da reforma agrária: entre a promessa do presidente Lula, feita pessoalmente em um acampamento de sem-terra em Brasília, e as verbas previstas no Orçamento, vai uma diferença superior a R$ 2 bilhões. Somando-se os recursos previstos para o Ministério do Desenvolvimento Agrário e seu braço executivo, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), chega-se a R$ 1,4 bilhão. Excluindo-se as despesas obrigatórias (pessoal, encargos e tudo o necessário para o funcionamento da máquina), sobra R$ 1 bilhão. As promessas são mais caras. O plano é assentar 400 mil famílias e conceder de crédito a outras 130 mil já assentadas, nos próximos três anos. Considerando um gasto médio de R$ 20 mil por família, são R$ 3,5 bilhões/ano. No lançamento do Bolsa Família, novo programa que reúne todas as iniciativas de transferência de renda, foram previstos gastos de R$ 5,1 bilhões em 2004. É prioridade do governo e o presidente garante que o recurso sairá, informa Ana Fonseca, a secretária-executiva dos programas sociais. O dinheiro, contudo, não se encontra no projeto de orçamento. Claro que o governo pode fazer como neste ano: tirar dos Transportes e jogar no Bolsa Família. O problema é que todos os ministros estão contando com um alívio para 2004, e aí a conta não fecha. Isso é comum em qualquer tipo de administração. A demanda por gastos supera de muito a oferta de recursos, que é a receita de impostos, taxas e contribuições. Sempre é preciso decidir para onde vai o dinheiro. O problema é quando se alimentam expectativas exageradas, como é o caso. O Ministério das Cidades, por exemplo, considera que tem já garantidos R$ 2,9 bilhões para novos investimentos em saneamento. Esse dinheiro é o que excedeu o superávit primário (receitas menos despesas exceto gastos com juros) previsto para o setor público até setembro último, conforme o acordo com o FMI. Quando anunciou a renovação do acordo, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, de fato disse que estava combinado esse investimento em saneamento, ainda que o superávit primário não registrasse o mesmo excesso em dezembro. Ao mesmo tempo, porém, Palocci disse que estão mantidos todos os limites ao endividamento público previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal e que não haverá revisão dos acordos de refinanciamento das dívidas dos governos estaduais e prefeituras. Como esses limites estão estourados na maior parte dos casos, fica-se sem saber como serão gastos aqueles R$ 2,9 bilhões. Mais ainda: na versão original do projeto de orçamento, estavam previstos investimentos do governo central de R$ 7,8 bilhões em toda a área de infra-estrutura. Parte disso já foi retirada pelo relator do projeto no Congresso, o deputado Jorge Bittar (PT-RJ) para acomodar outras despesas. Além disso, a reforma tributária, em tramitação, certamente vai transferir receita da União para Estados e Municípios. É possível, conforme as últimas contas de Bittar, que a União perca todos os R$ 6 bilhões que sobraram para investimentos. É verdade, por outro lado, que a nova Cofins, prevista na Medida Provisória 135, pode recuperar quase toda essa perda, conforme a conta de técnicos do Congresso. O Ministério da Fazenda acha que a mudança dará um ganho de receita muito menor – mas talvez afirme isso para sustentar o discurso segundo o qual a nova Cofins é neutra, pois se aumenta a carga de alguns setores, diminui de outros. Como os setores perdedores estão se movimentando no Congresso, o resultado é que não se sabe como ficará essa conta. Mas mesmo que os técnicos parlamentares tenham razão, o valor previsto para investimentos em infra-estrutura continua uma mixaria, na faixa dos R$ 5 bilhões para tudo, de estradas e portos a saneamento e aviões da Força Aérea. De outro lado, estão os investimentos das estatais, com previsão de R$ 32,8 bilhões. Tirando os 8 bilhões e tanto que serão gastos no exterior, pela Petrobrás, sobram pouco mais de R$ 24 bilhões. Cerca de 65% desse total são, de novo, da Petrobrás, que já está investindo pesadamente neste ano, com base nos lucros obtidos com os altos preços dos combustíveis. Quer dizer, não será também pelos investimentos das estatais que se dará uma virada na economia. Tudo considerado, o governo Lula está topando com uma realidade que o PT não admitia. O governo não tem como aumentar gastos simplesmente porque já arrecada demais e gasta demais. Não é falta de vontade política ou excesso de conservadorismo. A receita líquida da União para 2004 (excluídas as transferências para Estados e Municípios) é de R$ 342 bilhões. O superávit primário previsto – a economia para pagar parte da conta de juros – é de R$ 42,3 bilhões. Sobram, portanto, R$ 299,7 bilhões, dos quais apenas R$ 60 bilhões são reservados para gastos discricionários do Poder Executivo federal. E a metade disso vai para o Ministério da Saúde, por regra constitucional. O grosso do dinheiro vai para pessoal e encargos (R$ 83,8 bilhões), Previdência (R$ 124 bilhões) e outros itens, como seguro desemprego, abonos etc.. E, detalhe essencial, o projeto de orçamento 2004 não prevê reajuste real de salários para o funcionalismo, nem para o salário mínimo. E todos sabem da promessa de Lula de dobrar o valor real do mínimo no curso de um mandato, além de recuperar a situação do funcionalismo. Como as contas deste ano e do próximo já evidenciaram, essa promessa é inviável. Seria viável apenas em duas hipóteses: parar todo o governo ou desistir do controle das contas públicas via superávit primário. No primeiro caso, seria um desastre administrativo. No segundo, o endividamento público voltaria subir, o governo perderia a credibilidade conquistada até aqui, voltaria a crise de confiança. O presidente e alguns de seus ministros continuam dizendo que o orçamento 2004 será realista – “pela primeira vez” – e permitirá uma descompressão. Nem uma coisa, nem outra. Será igual aos outros, por uma razão simples: o gasto público é elevado, engessado e, frequentemente, mal dirigido. É aqui que se precisa de reforma. Estão aprendendo que há promessas caras. Publicado na revista Exame, edição 807, data de capa 10 de dezembro de 2003

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