MAS PARECE UMA VACA

O Banco Central vê muitas coisas. Mas onde está vaca?

Diz que um psicólogo americano, tentando provar sua tese segundo a qual a gente vê imagens separadas e compõe o ?conceito? na cabeça, resolveu entrevistar um vaqueiro, ao lado de seus alunos. Foi mais ou menos assim:
— O que o senhor está vendo ali na frente? ? pergunta o psicólogo
— Uma vaca, responde o vaqueiro.
— Mas olhando bem, prestando atenção na imagem, o que parece?
— Uma vaca e ela está de lado para nós.
— Mas o senhor não está vendo antes um amplo plano azul e outro verde?
— Sim, o céu e o pasto.
— Bom, quanto ao objeto ali no meio …
— A vaca…
— Na verdade, o senhor não estaria vendo planos e cores brancas e negras?
— É …
— Planos inclinados e tons diferentes, certo?
— Olha doutor, vista deste lado, parece uma vaca.
Podem-se ver muitas análises e planos isolados na última ata do Comitê de Política Monetária do Banco Central, na qual se anunciou que a taxa básica de juros vai parar nos 9% ao ano. Mas parece que o Copom enxergou mesmo foi uma bela vaca, a caderneta de poupança.
O bicho já estava no pasto. Dentro do governo e fora dele, e especialmente nos meios políticos, crescia a discussão sobre como mudar a regra de correção da poupança. Mudança tida como obrigatória.
A poupança, pagando 0,5% ao mês, mais a TR, deu uma remuneração de 7,4% no ano passado. O poupador não recolhe imposto de renda, não paga taxa de administração, pode sacar a qualquer momento e tem garantia do governo.
Assim, se a taxa básica de juros fixada pelo BC ? que remunera títulos do governo, base dos fundos de investimentos, e é piso do custo do dinheiro ? cair para a casa dos 8%, a poupança surge como aplicação imbatível. Em um fundo, em títulos de renda fixa, o investidor paga IR (de 15% a 25%) e mais taxa de administração.
E qual o problema de a poupança tornar-se preferencial?
Começa que o Tesouro, o governo, terá dificuldades para financiar seus gastos e a rolagem da dívida. Por que o investidor compraria quotas de um fundo ou papéis no Tesouro Direto, numa operação mais complicada e menos acessível aos pequenos, se tem a simplicidade da poupança, pagando praticamente a mesma coisa?
Além disso, obviamente os grandes aplicadores, que têm facilidade para movimentar seu dinheiro, correriam para a poupança. (Na época da inflação alta e crônica, havia determinados momentos em que a poupança rendia bem acima dos índices de preços. Os próprios banqueiros, direta ou indiretamente, corriam a depositar seu caixa na velha caderneta).
Por outro lado, a poupança financia a construção civil. Com os juros do BC lá embaixo, aumentariam os recursos disponíveis para a casa própria, mas em proporção certamente superior à capacidade do setor. Nem haveria famílias para tomar todo esse financiamento, nem construtoras para atender a demanda.
Assim, sobrariam recursos em um lado e faltariam de outro, com um desequilíbrio grave do sistema financeiro.
É, portanto, conclusão unânime. Para que os juros caiam no Brasil, é preciso mudar o sistema da poupança, com um objetivo explícito: reduzir a remuneração, pagar menos. Caso contrário, a regra da poupança impõe um piso para a taxa básica de juros, ali nas cercanias dos 8%.
Exatamente por isso, quando a taxa caiu a 8,75% em 2009, o governo Lula preparou e divulgou uma proposta para mudar a poupança. O debate esquentava, o governo já estava meio arrependido, e aí, com a volta da inflação, os juros subiram de novo e o problema desapareceu.
Mas voltou. Como a presidente Dilma, o ministro Mantega e o presidente do BC, Alexandre Tombini, diziam abertamente que estava em curso um processo de redução estrutural da taxa de juros e como o Copom começou a derrubar a taxa antes e mais depressa do que o mercado esperava, a discussão sobre a poupança entrou no cenário.
O governo não oficializou nada, mas todo mundo sabia que os estudos estavam em andamento. Já se pensava até em campanhas de esclarecimento. Mas a coisa rolou também na política.
Poupança é sagrada, é o dinheiro do povo. Fazer uma maldade aí em pleno ano eleitoral? De seu lado, a oposição, de maneira tão oportunista quanto irresponsável, já esfregava as mãos: o governo confiscando o dinheiro da poupança ? e, por falar nisso, Collor não está mesmo na base de Dilma?
Logo, faz todo sentido a reação do governo: não se fala mais nisto pelo menos neste ano. E a queda dos juros? A taxa do BC para nos 9% até o final deste ano.
A ata do Copom não diz isso, nem o governo. A ata traz um longo arrazoado técnico para explicar a decisão. Mas vamos falar francamente: estatísticas bem torturadas confessam muita coisa cenários sobre o futuro, então…Não que seja uma prática comum e recomendável, mas não é difícil tomar uma decisão e depois buscar os argumentos para apoiá-la.
O BC tem apresentado frequentes surpresas, pequenas e grandes. Entre estas, foram duas mudanças súbitas de curso: a primeira, no ano passado, no sentido da ousadia, da heterodoxia, quando o Copom deu uma guinada para iniciar forte redução de juros a segunda agora, numa direção que se diria conservadora. quando anuncia a interrupção do processo de queda, em um ponto mais alto do que sugeria ainda há poucos dias.
Os analistas, tanto os que apoiavam quanto os que criticavam o BC, entenderam que a Copom da era Dima/Tombini era diferente, se preocupava com crescimento, além da inflação, e marchava para testar juros mais baixos. De repente, parou.
Pode-se dizer: mas é por pouco tempo, no ano que vem se retoma o processo. Não é bem assim. Se estava certo o raciocínio do BC antes da última mudança, o momento atual oferecia uma janela de oportunidade para acelerar a derrubada dos juros. Ano que vem, volta a inflação e a situação se complica.
Não é normal um BC surpreender o mercado tantas vezes seguidas. Nem o mercado nem o BC gostam disso. Desorganiza planejamentos de empresas e pessoas. Por isso, os analistas se esforçam para entrar na cabeça do BC e enxergar os mesmos horizontes. Mas está difícil.
Olhando o horizonte, o BC apontou vários cenários ? planos inclinados e cores. Em nenhum deles, aparece a restrição da poupança. Mas pode olhar bem – é o que parece….a vaca está lá.

Publicado em O Estado de S. Paulo, 19 de março de 2012

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