LULA, A ESQUERDA E A DIREITA

. Fidel poderia ajudar Lula Tome-se o caso da senadora Ideli Salvati, do PT de Santa Catarina. Ela vai votar a reforma da Previdência, mas não gostou nada da Medida Provisória que liberou a soja transgênica. Já o senador Paulo Paim, do PT do Rio Grande do Sul, considera a reforma da Previdência um enorme equívoco – ele acha que não existe déficit previdenciário – mas admite a MP dos transgênicos, que é do interesse direto de 150 mil pequenos agricultores gaúchos, plantadores da polêmica leguminosa. Também há petistas que engolem a reforma da Previdência e tampouco se incomodam com a MP, mas rejeitam a possibilidade de um novo acordo com o FMI, hipótese considerada pelo governo. Assim, o governo Lula obtém resultados aparentemente contraditórios: amplia a cada dia os pontos de atrito com seu próprio pessoal, mas aprova tudo o que precisa. Só funciona porque os pontos de atrito permanecem isolados uns dos outros, como elos separados. A coisa ficará complicada para o governo quando e se os elos se juntarem. Qual a chance disso acontecer? A resposta depende de uma análise diferente do PT. Normalmente, o partido é apresentado como tendo um pensamento homogêneo e prática disciplinada, programa e estatutos bem definidos – ao contrário da mixórdia dos demais partidos. Mas bastaram alguns meses de poder federal para se verificar que a unidade petista era mais uma virtude de oposição. De fato, só o princípio do contra-isso-tudo-que-está-aí poderia ter reunido tanta gente e tantas bandeiras. Tudo mundo que tinha algo a acrescentar ao grito de “fora!” podia entrar no ônibus. Fora: reformas, FMI, latifúndio, viagens de FHC, transgênicos, Alca, superávit primário, poluição, neoliberalismo, Malan&Armínio, juros, machismo, globalização, racismo, credores da dívida pública, privatização, agências reguladoras, fisiologia, troca-troca de votos no Congresso, discriminações diversas, uso privado da coisa pública, loteamento de ministérios, ACM, Sarney, Jader e por aí foi. Qualquer coisa que fosse o contrário daquela lista cabia na esquerda, merecia a estrelinha vermelha. Até o Fórum Social de Porto Alegre, foi tudo bem. Já no governo de um país com PIB de R$ 1,6 trilhão, não pode dar certo. Assim, de duas, uma: ou o governo se esfarela tentando atender toda sua clientela ou começa a separar e selecionar políticas. Lula escolheu este último caminho, o que significou mudar a cabeça ainda que isso tenha exigido apertar o coração. A viagem a Cuba, por exemplo, é coisa do coração. Mesmo quem abandonou o sonho socialista há muitos anos (e sentiu-se horrorizado quando tomou conhecimento dos fuzilamentos e outras atrocidades cometidas pela ditadura de Fidel) ainda nutre alguma simpatia pela ilha de Che. Tome-se o caso de José Dirceu. Ele morou lá, treinou guerrilha, recebeu ajuda para voltar ao Brasil. Hoje, ninguém imagina que Dirceu possa estar preparando alguma marcha socialista. Todo mundo sabe que ele está anos-luz longe disso. Ainda assim, não há como ele não se emocionar ao entrar em Cuba como ministro-chefe da Casa Civil do governo brasileiro. Para falar a verdade, Lula, Dirceu e os outros gostariam mesmo era de chegar a Cuba e lavar a alma – a velha alma esquerdista. Fazer um comício monumental com milhares de bandeiras vermelhas, desancar os Estados Unidos e os traidores de Miami, cantar “el nombre del hombre es pueblo”, pedir “mano dura camarada Fidel” e encerrar a noite fumando charutos debaixo de um imenso retrato do Che. No dia seguinte, um banho gelado, terno e gravata, embora para o Brasil tratar da reforma da Previdência, MP dos transgênicos, negociar acordo com o FMI, telefonar para o Bush e explicar que aquilo tudo foi só uma farra, ok? Mas certamente interpretariam mal, não é mesmo? Por isso, Lula foi a Cuba levado pelo coração, mas contido pela razão e pelas circunstâncias de governo. (Este artigo foi escrito na sexta final da tarde, quando ainda não se sabia de eventuais mancadas na ilha). De todo modo, Lula correu riscos desnecessários. Ele e seu pessoal ainda estão na fase das mudanças, operando contradições internas, ganhando confiança do mercado, enfim em um momento em que qualquer palavra ou gesto mal colocado pode causar danos enormes. Por outro lado, a viagem pode ser um afago na esquerda, uma compensação pelas contrariedades que esta tem sofrido com reformas, FMI, juros altos, superávit e transgênicos. Pois algo Lula precisa fazer para impedir que os sucessivos pontos de atrito se juntem numa corrente única de oposição. Assim, talvez um abraço em Fidel saia até barato. Tão barato quanto um discurso duro para investidores estrangeiros no momento em que eles estão trazendo dólares para o Brasil animados com a política econômica super clássica. De todo modo, a cada dia que passa Lula e seus próximos enfrentam novos conflitos, internos e externos. Trata-se de manter a base e, ao mesmo tempo, a política econômica, manter a esquerda enquanto traz para dentro as reformas, o FMI, o superávit, os transgênicos. Sem contar que os investidores privados, nacionais e estrangeiros, ainda não estão totalmente convencidos e querem mais provas (contratos, marco regulatório pró-mercado) para apostar pesado no Brasil. Resumo da ópera: a cada “fora” que abandonar, Lula precisará de um gesto à esquerda. Ou uma boa explicação, assim como se fez com a reforma da Previdência, transformada em instrumento de justiça social. Ajudaria muito, por exemplo, se o camarada Fidel elogiasse as reformas de Lula. E melhor ainda comprasse um lote da soja transgênica gaúcha. Publicado em O Estado de S.Paulo, 29/09/2003

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