IDEOLOGIA E POLÍTICA DE VOTOS

. Esquerda? Direita? É preciso admitir que a situação não está fácil para os políticos de verdade, aqueles que procuram interpretar e liderar os interesses e os sentimentos dos eleitores. Não apenas aqui no Brasil, mas em toda parte se tem reclamado da ambiguidade dos políticos tanto de direita quanto de esquerda. Mas, e se a ambiguidade estiver na cabeça e na alma dos eleitores? Ou ainda: e se a história passa hoje por um daqueles momentos difícil de decifrar, resultando daí as vacilações de eleitores e políticos? Tome-se a França, exemplo sempre considerado pelos analistas, pois lá, tradicionalmente, direita é direita e esquerda é esquerda, termos e conceitos, aliás, inventados lá mesmo. Pois faz alguns anos que a França oferece exemplo de ambiguidades. O socialista François Mitterrand chegou à presidência, em 1981, como socialista de verdade. Com maioria na Assembléia Nacional, o parlamento, começou logo estatizando bancos e grandes empresas. Não deu certo, pois embora então não se percebesse, o muro de Berlim já estava rachando. De todo modo, Mitterrand foi amenizando o tom socialista, até por exigência do eleitorado que, afinal, lhe impôs a primeira coabitação, presidente socialista, maioria de direita na Assembléia fazendo o primeiro-ministro. Mitterrand ocupou a presidência por dois mandatos e 14 anos, tendo cinco de coabitação, três dos quais na parte final de seu período. Em 1995, os franceses recolocaram a direita na presidência, com Jacques Chirac, e, sem ambiguidades, lhe deram também a maioria na Assembléia. Chirac fez seu primeiro-ministro, Allain Juppé, que iniciou uma administração voltada para as reformas – sim, aquelas, privatização, enxugamento do setor público, reforma da Previdência, abertura e flexibilização de regras para facilitar o funcionamento da economia de mercado. Neoliberalismo é o nome de guerra. Parecia ser esse o sentido da votação e a vontade dos eleitores. Entretanto, dois anos depois, em meio a greves, especialmente do funcionalismo público, e monumentais protestos de rua, Juppé foi posto para fora. Pouco depois, os eleitores deram aos socialistas a maioria na Assembléia, refazendo a coabitação, invertida, presidente de direita, primeiro-ministro, Lionel Jospin, de esquerda. Jospin já não foi socialista como o primeiro Mitterrand. Embora mantivesse o discurso esquerdista, andou fazendo privatizações – mais até do que primeiro-ministro de direita. Também reduziu impostos, outra política liberal. Mas introduziu a semana de 35 horas, que aumentou ainda mais o custo do trabalho na França, já travado por excesso de regulamentações, não tocadas, e abandonou os planos de reforma da Previdência. O que teria sido, então? Uma administração da velha ou da nova esquerda? Uma esquerda que foi tanto ao centro a ponto de, em diversos aspectos, se confundir com a direita? Essas questões apareceram, dentro do Partido Socialista, na campanha de Jospin para a eleição presidencial de maio último. Lá pelas tantas, a direção do Partido Socialista chegou à conclusão que era preciso se distinguir da direita, já que a onda liberal e globalizante parecia estar morrendo em toda parte. Vai daí, Jospin prometeu suspender as privatizações e a abertura da economia, ambas incompletas. Também chamou para animar sua campanha Luis Inácio Lula da Silva, conhecido internacionalmente e sobretudo na França, como um verdadeiro político de esquerda. Seria um sinal. Não deu certo, não por culpa de Lula, é claro, mas dos próprios socialistas franceses que não se entenderam com seus eleitores. O fato é que o primeiro turno da eleição presidencial terminou com o ultradireitista Jean Marie Le Pen chegando em segundo, com Chirac em primeiro e Jospin num terceiro lugar que liquidou sua carreira e o governo socialista. No segundo turno, com o apoio da esquerda, Chirac arrasou Le Pen (fez 82% dos votos). Nas eleições legislativas que se seguiram, a direita civilizada, do presidente reeleito, ganhou com folgas no primeiro turno e deve ter confirmado a vitória no segundo turno, que foi ontem. (Escrevemos este artigo antes de se conhecerem os resultados). Se confirmadas as pesquisas, Chirac terá de novo um governo como o de 1995, com ampla maioria na Assembléia e um primeiro-ministro de seu partido. De novo em seu programa estão as reformas – Previdência, legislação trabalhista, abertura etc. etc. Aparentemente, esse teria sido o recado das urnas, não apenas na França, mas nos demais países europeus em que a esquerda vai sendo derrotada. Mas a própria direita não parece tão convencida de que esse é o caminho. Diferentemente de 1995, Chirac foi menos incisivo em temas como Previdência e privatização, especialmente polêmicos numa França ainda tão estatal e tão desconfiada do capitalismo. Talvez os eleitores tenham votado na direita por causa de temas como combate à criminalidade, assunto no qual a esquerda é tão rica de teses quanto pobre de políticas efetivas quando chega ao governo. Não por acaso, foi o ponto forte de Le Pen. Em resumo, a esquerda francesa está claramente desarvorada. Mas ainda está por ver se a direita retomou uma política liberal clara. E se os eleitores aprovarão a volta das reformas. Mas por que estamos tratando de assuntos externos, num momento em que a realidade brasileira pega fogo? Porque a França é o paradigma. Se lá, onde direita e esquerda costumavam ser conceitos claros, parece tudo meio atrapalhado, como não estaria aqui no Brasil? Tome-se Lula. Que lições terá recolhido da derrota de seu amigo Jospin? Que perdeu por ter sido muito de esquerda ou pouco de esquerda? Traduzindo aqui: esquerdiza sua campanha, correndo o risco, já evidente, de colocar lenha na fogueira do mercado financeiro, em troca de votos para um governo de verdadeira ruptura? Ou faz um discurso amigável ao mercado, arriscando perder votos à esquerda em troca de tranquilidade no front econômico e votos do centro, para um governo moderado, de suaves mudanças?  Tome-se, de outro lado, José Serra. O governo FHC tem sido criticado por avançar demais na reformas neoliberais e por tê-las deixado pelo caminho. Onde estaria a maioria do eleitorado? Eis aí, ambiguidades. E tema de um próximo artigo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 17/06/02

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