ENERGIA: FALTOU PRIVATIZAÇAO E AJUSTE

.   PRIVATIZAÇÃO DE MENOS   Argumenta-se que a crise de energia decorre da privatização e do viés fiscalista do governo, isto é, o objetivo de controlar as contas públicas. Os dois fatores, verso e reverso, teriam impedido os investimentos no setor. O objetivo deste artigo é demonstrar o contrário: a crise decorre da falta de privatização e da demora no ajuste das contas do governo. O primeiro ponto é o mais fácil. O setor não está privatizado. Foram desestatizadas distribuidoras de energia estaduais. Nem todas. Algumas permanecem estatais, como as empresas de Minas, Santa Catarina e Paraná. Na geração, foram vendidas apenas empresas paulistas. As federais empacaram – e elas controlam mais de 70% do setor. A rede de transmissão de energia permanece inteiramente estatal. O setor, portanto, permanece sob controle do Estado. E ao que consta, a crise está na geração e na transmissão, não na distribuição. Se houvesse uma crise de telecomunicações, aí sim se poderia dizer que a culpa era da privatização. Essa área foi totalmente vendida, mas vai muito bem, obrigado. Argumenta-se, entretanto, que no caso da energia o problema foi a filosofia da privatização. Como a idéia era vender todas as estatais geradoras e distribuidoras, o governo federal bloqueou os investimentos dessas empresas, providência que, de resto, cabia bem no esforço de conter o gasto público. Considerando que não houve investimentos privados em geração, deu-se a crise. Culpa da privatização e do ajuste fiscal, pois. O argumento é tão esperto quanto maroto. Parte de um fundo de verdade, a falta de investimentos e a existência de um projeto de privatização, para empurrar uma conclusão falsa. O ponto central não está nem no programa, muito menos na filosofia de privatização. Está na circunstância de que a coisa, de fato, não andou. O exemplo mais gritante está em Furnas, a maior geradora, que é federal. A empresa está no programa de privatização desde o primeiro governo FHC, há mais de seis anos, portanto. Um pouquinho antes de explodir a crise de energia, o governo anunciou que Furnas seria vendida até o final deste ano, no máximo no começo de 2002, com a pulverização de suas ações. Ninguém acreditou nisso. Havia objeções políticos de tucanos importantes, de todo o PFL do Nordeste, de partes do PMDB – de modo que se convencionou o seguinte: o governo diz que vai privatizar porque, afinal, a coisa está no programa, foi garantida aos investidores e ao FMI, mas aqui entre nós a gente sabe que é de araque. Restrições políticas devem ser levadas em conta. Se a base governista não sustenta essa privatização, o presidente tem duas possibilidades: ou atropela ou desiste. FHC não escolheu nenhuma das duas. Manteve-se à espera, supondo que, como o ambiente político vive mudando, talvez em algum momento surgisse uma oportunidade de fazer a tal venda pulverizada. A crise apareceu antes. De todo modo, argumenta-se, o governo deveria ter mantido os investimentos das estatais em vez de se concentrar no equilíbrio das contas públicas. Mas por que o equilíbrio das contas públicas era um objetivo prioritário? Porque o setor público estava quebrado. O governo estava gastando mais do que arrecadava. Tinha patrimônio, as estatais, mas estas rendiam menos que a conta de juros. Se você tem uma casa que vale 100 mil e lhe dá mil reais de aluguel e, na outra ponta, tem uma dívida de 100 mil que lhe custa juros mensais de 15 mil, é negócio vender a casa e matar a dívida. Esse foi o sentido da privatização. Não foi nem por ideologia. Entre tucanos, pefelistas e peemedebistas, são raros os liberais. Da mistura entre estatizantes, nacionalistas, fisiológicos ou simplesmente picaretas, nasce uma forte maioria a favor de manter as empresas estatais. Para os bem intencionados, permite o controle sobre setores estratégicos da economia. Para os demais, é uma tremenda fonte de poder de nomear, contratar e comprar. Nesse quadro, a privatização só andou pelo empenho da área econômica e pela circunstância de o país estar passando por seguidas dificuldades. Quando a situação melhorou um pouco e o país ameaçou voltar a crescer, isso do final de 1999 para cá, com superávit primário nas contas públicas e inflação domada, a emergência cessou e o pessoal do governo achou que já era hora de esquecer dessa história de privatizar. O senhor e a senhora sabem como é. A oposição bate muito na privatização, há uma elite na classe média que vive em torno das estatais, políticos vivem disso e tem o falso nacionalismo, esse de achar que a luz gerada por uma estatal é mais brasileira, mais nossa que a do imperialismo. Mas para verificar que a política privatização/ajuste funciona, basta olhar para as telecomunicações. A privatização levou dinheiro para o caixa do governo, trouxe um caminhão de dólares para ajudar nas contas externas e as telefônicas privadas saíram comprando telefones, centrais, torres de transmissão, fios e fibras óticas, gerando uma forte atividade econômica. Quem quiser, tem o seu celular – e ninguém está se importando com a origem da companhia que gera o serviço. Já na energia elétrica, o governo FHC vacilou o tempo todo. Empacou na venda das geradoras. Não acertou o negócio do gás natura, que é, registre-se, monopólio estatal da Petrobrás. O governo estipulou que empresas privadas poderiam construir termoelétricas e vender a energia, mas não definiu o preço que pagariam pelo gás e as condições de acesso ao produto. E depois reclamam que a iniciativa privada não investe. O governo não acertou as tarifas, permitiu que Furnas desse o cano no Mercado Atacadista de Energia e por aí vai. E agora? São caminhos opostos. Ou se encontra um Sérgio Motta da energia elétrica e se faz tudo o que não se fez. Ou se desiste da privatização e o governo assume os investimentos no setor. Mas nesta última alternativa será preciso analisar o custo: de onde tirar o dinheiro? Abandona-se o ajuste fiscal? Eis uma dica: por receio do impacto social de reajustes de tarifas, o governo segurou e assim reduziu a capacidade de investimentos das empresas distribuidoras; por receio da oposição política à privatização de Furnas e outras geradoras, o governo enrolou; para não trombar com a Petrobrás e sua turma, o governo não definiu o preço do gás natural. E trombou com a crise avassaladora de energia. Se agora quiser mandar o ajuste fiscal para o espaço e torrar o dinheiro público, pode trombar com o impacto destruidor de uma inflação antes que se acendam as luzes. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 28/05/2001)

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