UMA VERDADE NO GOVERNO, OUTRA NA OPOSIÇÃO

. Lambanças O governo Lula vinha tão bem no ajuste das contas públicas, fazendo um superávit primário muito forte sem aumento de impostos, mas já cedeu à tentação de todos que chegam ao poder. Na votação da Medida Provisória 107, na Câmara dos Deputados, encaixou um ganho de receita de expressivos R$ 2 bilhões com a elevação de duas contribuições, uma tomando mais dinheiro dos bancos (os suspeitos de sempre), outra dando uma garfada nas empresas de prestação de serviços que costumam abrigar profissionais liberais e autônomos da classe média. Pode-se até argumentar: os bancos estão ganhando muito dinheiro com os juros altos. E grande parte das empresas de prestação de serviços funciona como um esquema para que certos profissionais paguem menos impostos. Aliás, a Receita Federal, que é, neste governo, praticamente a mesma da administração anterior, faz tempo que tenta apanhar esse pessoal. Mas o fato é que a equipe econômica de Lula acusava a administração FHC de ter conseguido o ajuste das contas públicas só com aumento de impostos. Crítica muito correta, por sinal. Estudo da Receita Federal, divulgado na semana passada, mostra que a carga tributária chegou a 35,86% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2002, um salto de dois pontos porcentuais em relação ao ano anterior. Trata-se da carga total, ou seja, do dinheiro recolhido pelos governos federal, estaduais e municipais. E esses governos, no conjunto, torraram a maior parte desse ganho de receita em despesas correntes e de investimentos. No ano passado, o setor público fez um superávit primário (que exclui as despesas financeiras) de 3,96% do PIB, apenas um pouquinho superior ao do período anterior (3,64%). Resumo, ganhou 2 pontos porcentuais e economizou apenas 0,32. A promessa do atual governo era de fazer superávit maior sem mais carga tributária. A MP 107 aumenta a carga. Mais grave ainda que esse aumento veio em troca de uma espécie de anistia a empresas processadas por apropriação indébita. Trata-se das empresas que descontaram a contribuição previdenciária de seus funcionários e não passaram o dinheiro à Previdência. Estão sendo processadas por esse crime, mas se entrarem no novo Refis e começarem a pagar o débito, o processo é suspenso – conforme a MP 107 patrocinada pelo PT e os partidos da base aliada. Pegou mal, o pessoal da Receita considerou a coisa “imoral” – a anistia, não o aumento das contribuições, claro – de modo que há possibilidades de mudança no Senado, onde a medida agora tramita. PFL e PSDB, com alguns parlamentares do PMDB, já anunciaram que pretendem fazer uma barragem antiimpostos na votação do Senado. Pode-se considerar uma postura politicamente correta, pois é quase unânime entre os economistas a opinião segundo a qual a carga tributária no Brasil é muito elevada em relação à riqueza e ao tamanho do país. Mas também será preciso admitir que essa postura é outra dessas viradas que têm surpreendido no cenário político e econômico. Esses três partidos estiveram no núcleo dos dois governos FHC, período em que a carga tributária saltou de 25% do PIB para os 35,86% do ano passado. Considerando que o PT e os demais partidos de esquerda, quando na oposição, votavam contra o aumento de receita, pode-se deduzir uma regra da política local: imposto só é bom quando a gente está no governo. Pensando bem, pode-se aplicar a mesma regra às reformas. São sempre bandeiras do partido que está no governo, não importa se são partidos de esquerda, direita, centro ou apenas fregueses do poder de plantão. Já com o salário-mínimo ocorre o contrário: é bandeira dos partidos que estão na oposição; um buraco no orçamento para o partido do governo. Assim, uma mesma medida econômica, quando vista pela ótica partidária, varia de esbulho a justiça social (caso da taxação dos inativos); ou de assalto ao contribuinte a contribuição dos que podem pagar (caso dos impostos). Depois reclamam quando as pesquisas de opinião mostram que as pessoas não confiam nos políticos e seus partidos. Não é fácil governar, é verdade, sobretudo em um país tão heterogêneo como o nosso. É necessária uma boa dose de pragmatismo, realismo político, de modo a aceitar composições com interesses diversos. Mesmo no caso da anistia a empresas processadas por apropriação indébita, pode-se fazer um argumento. Pela MP 107, o processo estará suspenso enquanto a empresa estiver pagando suas dívidas – e isso talvez seja melhor do que simplesmente condenar e, pois, fechar a firma culpada. Há também o contra-argumento. De anistia em anistia, o crime passa a compensar: vale a pena não pagar os impostos, usar o dinheiro nos negócios ou simplesmente embolsá-lo, enquanto se espera pelo próximo Refis. Por sinal, o novo Refis vale para empresas que estavam no anterior e não pagaram as prestações. É o perdão do perdão. De novo, fecham-se as empresas (reforçando a regra de que imposto é para ser pago) ou se lhes oferece outra chance, para salvar empregos, por exemplo, mas correndo o risco de criar um ambiente de frouxidão fiscal? Esse é um debate. O que pega mal é o argumento ético de ocasião. Quando o partido está na oposição, clama – “cadeia para os fraudadores” – e acusa o governo de suspeita conivência com os devedores. Ganha as eleições com essas denúncias, chega lá e assim direto, sem mediação, emplaca uma MP 107. O inverso também pega mal. O partido fica oito anos votando aumento de impostos, perde a eleição e, sem mais nem menos, passa a denunciar o arrocho fiscal. Eis aí, mais lambança do que pragmatismo. Já o déficit da Previdência, para tomar o assunto mais polêmico, não é de esquerda nem de direita, governista ou oposicionista. É um cálculo, uma conta que dá sempre o mesmo resultado. Quem sabe a radical troca de papéis que se verificou na política brasileira leve os partidos a um verdadeiro realismo, inclusive aritmético. Publicado em O Estado de S.Paulo, 12/052003

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