REFORMA TRIBUTÁRIA NO SENADO

. Uma fatia de cada vez O melhor que o Senado pode fazer é aprovar apenas os pontos mais urgentes da reforma tributária   Como se não bastasse a disputa pelo dinheiro dos impostos travada entre os governo federal e estaduais, entre Estados ricos e pobres e entre Estados e prefeituras, surge o risco de uma briga de sensibilidades entre o Senado e a Câmara dos Deputados para se definir qual casa dá a palavra final na reforma tributária. E se as coisas tomarem esse curso, torna-se ainda mais distante aquele que deveria ser o objetivo básico da reforma – reduzir ou ao menos racionalizar a carga tributária de modo a estimular consumo, poupança e investimento, vale dizer, o crescimento. A decisão tomada pelo Senado, apoiada nos líderes dos principais partidos, de mudar o texto votado na Câmara é uma santa providência. O que parecia um êxito dos deputados – a aprovação tão rápida da reforma – mostrou-se um equívoco monumental. No tumulto de reuniões que avançavam pelas madrugadas de Brasília, entre telefonemas aflitos às capitais estaduais, os votos necessários foram capturados à custa de concessões e acertos com governadores e grupos variados de interesse, sem que houvesse uma espinha dorsal. Resultou um projeto que tinha o que cada um queria e que, portanto, era ruim para todos. Sem contar os pontos que apareceram não se sabe de onde, como a regra que desfechou a guerra fiscal de setembro. Trata-se do dispositivo segundo o qual os incentivos fiscais concedidos pelos Estados até 30 de setembro permaneceriam válidos por onze anos. Detalhe: o texto foi aprovado no início de setembro. Foi como se dizer a um grupo social: não pode matar, mas só daqui a três semanas. Estabeleceu-se uma licença para a farra fiscal, aproveitada alegremente por governadores estaduais e suas assembléias legislativas, que nunca foram tão rápidas no gatilho. Em menos de 20 dias, os deputados estaduais do Rio Grande do Sul aprovaram 59 projetos de isenção e/ou redução de ICMS; no Rio, 23 projetos; Alagoas, 30; Minas, outros tantos. E por aí foi, quando um dos objetivos solenes da reforma era justamente o de acabar com a guerra fiscal. Só por aí estava claro que o texto da Câmara precisaria ser alterado. Pouco a pouco foram aparecendo outros daqueles acertos da madrugada. Quando tudo clareou, havia um projeto confuso, fonte de novos conflitos, ruim tecnicamente pois engessava ainda mais os orçamentos públicos e, mais grave, que abria espaço para uma nova rodada de aumento de impostos. Não surpreende que, em poucos dias, no início de outubro, os líderes dos seis principais partidos do Senado, incluindo os de oposição, tenham chegado à conclusão que era preciso começar de novo. Também não surpreende que os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, e da Casa Civil, José Dirceu, aliviados, tenham apoiado a decisão dos senadores. A União perdia receitas expressivas. O problema – quer dizer, um dos problemas – é que não há palavra final em projeto de emenda constitucional. Tudo que o Senado alterar no texto deve voltar à deliberação dos deputados. Se estes modificarem de novo, como o presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, tem insinuado ou ameaçado, o projeto faz o caminho de volta para o Senado e assim por diante. Dessa forma, o que já era difícil tornou-se ainda mais complicado. Além dos problemas originais, há agora para administrar as competências de senadores e deputados federais e é preciso encontrar um meio de desfazer os efeitos da guerra fiscal de setembro. Tudo considerado, a única saída razoável é o fatiamento da reforma, por mais que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva rejeite o procedimento e insista na necessidade de uma reforma global, com o apoio dos governadores. Na verdade, Lula parecia ter chegado perto disso na última reunião da Granja do Torto, da qual os governadores saíram manifestando disposição de entendimento para afinar a reforma durante a tramitação no Senado. Bastou, porém, começar a falar de dinheiro – a divisão das receitas tributárias – e de novo a coisa se complicou. Por exemplo: os governadores davam por certo que receberiam 25% do total arrecadado pela Cide, o imposto sobre combustíveis, recursos carimbados para gastar em conservação de estradas. Mas a Fazenda, com senadores governistas, colocou na mesa uma outra proposta: formar um fundo federal para aplicar nas estradas, conforme gestão tripartite (União, Estados e municípios). É parecido e talvez seja até mais eficiente. Mas vá dizer ao governador que é melhor ele participar de um fundo tripartite do que ter dinheiro em caixa para gastar na estrada que bem entender. Se ficar assim, de conflito em conflito, já se sabe onde vai dar: ou a lugar nenhum – isto é, o atual e ruim sistema – ou a um regime tributário ainda pior. Mas há uma boa alternativa. O Senado pode salvar alguns pontos positivos e, digamos, engolir medidas ruins mas inevitáveis nas circunstâncias. A CPMF, por exemplo, é um péssimo tributo. A propósito, o economista Dionísio Carneiro, em artigo publicado em O Estado de S.Paulo, em homenagem ao Nobel de Economia Franco Modigliani, morto em 25 de setembro, lembrou de passagens saborosas da visita do ilustre professor ao Brasil. Numa delas, Mario Henrique Simonsen explicava como funcionava o Imposto sobre Operações Financeiras, avô até mais modesto que a atual CPMF, nota Carneiro. “Ah, entendo, respondeu Modigliani, trata-se de um imposto sobre o desenvolvimento, pois taxa ao mesmo tempo a poupança e o investimento”. Não é definição perfeita para o imposto do cheque? Ocorre que sem a CPMF (não menos que R$ 25 bilhões/ano) o governo federal não fecha suas contas, dada a existência de despesas obrigatórias e incomprimíveis. E, neste momento, a credibilidade do país exige que se fechem as contas e se faça o superávit primário. O texto aprovado pela Câmara aprovou a prorrogação da CPMF até 2007, o que foi muito melhor do que torná-la permanente. O Senado deve, portanto, aprovar esse ponto e salvar as contas da União. E aí se tem um prazo para pensar na lição de Modigliani. Do mesmo modo, o Senado deveria aprovar a DRU, Desvinculação de Receitas União, que serve ao mesmo propósito, o de garantir a execução de um orçamento equilibrado. Além disso, há coisas positivas que o Senado deveria e poderia manter: o fim da cumulatividade da Cofins, a desoneração das exportações e dos investimentos em bens de capital, o fundo de compensação aos Estados pelas perdas da Lei Kandir, a desoneração dos produtos da cesta básica e de medicamentos essenciais, a cobrança de contribuições sobre as importações. Se não for adequado o nome de fatia, pode-se designar esse conjunto de reforma tributária limitada ou inicial. Como tudo isso já consta do texto da Câmara, a aprovação no Senado seria final, de modo que a emenda poderia ser promulgada ainda neste ano. Todo o resto, inclusive a reforma do ICMS, ficaria para uma discussão mais tranquila, à luz do dia. Não importa que fique para o ano que vem. Tudo considerado, essa reforma fatiada é o melhor que pode acontecer. Na verdade, seria quase um milagre chegar a ela depois do modo como as coisas se passaram na Câmara. Há sinais de que o Senado pode avançar nessa direção razoável, mesmo porque o governo federal precisa da CPMF e da DRU neste ano. Mas também há senadores prometendo uma nova reforma inteirinha, inovadora e criativa. Como prometiam os deputados e como alguns ainda acham que produziram. Publicado na revista Exame, edição 803, data de capa 15/10/2003

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