QUEM QUER QUEBRAR A ARGENTINA?

. Quem quer quebrar a Argentina?   A situação da Argentina torna real um debate que, quando teórico, divide economistas, cientistas políticos e os governantes: deve-se ou não ajudar um país que sofre uma crise financeira? A resposta conservadora, ortodoxa, é curta e grossa: não. O argumento é consistente. Se a dívida se tornou “impagável”, a culpa ou é do país devedor – que adotou políticas equivocadas e assim não consegue juntar os recursos para pagar as prestações – ou é do credor – que emprestou sem fazer uma boa avaliação de risco ou, pior ainda, emprestou a juros caros na suposição de que, ocorrendo o pior, a comunidade financeira internacional resgataria o devedor. Este último caso é o “moral hazard” – traduzido por aqui por “risco moral”, o que não explica bem. Em resumo, trata-se do seguinte: você empresta dinheiro para alguém que está com a corda no pescoço, cobra juros exorbitantes porque o risco de calote é altíssimo, mas no fundo você sabe que não existe risco de verdade porque, na hora H, um terceiro financiador vem com uma mala de dinheiro e resgata o devedor, que paga o esperto credor. Vale também para os países. Se todos os governos sabem que o dinheiro do FMI está ali à mão, então pode-se gastar alegremente. Assim, diz o argumento conservador, ninguém aprende o valor das boas políticas econômicas e dos bons empréstimos. Se a crise chegasse ao seu desfecho, os maus seriam punidos igualmente. O país devedor sofreria com a crise e seus eleitores aprenderiam a eleger governantes que fizessem a coisa certa. Os credores perderiam dinheiro e nunca mais emprestariam para países que adotam políticas equivocadas. Simples, não é mesmo? Foi como disse o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Paul O’Neil, há três semanas: esses argentinos estão em crise há mais de 70 anos e não aprendem. Agora, eles e seus credores que se virem. Mensagem clara: o governo americano não apoiaria mais o resgate de países emergentes. Como os EUA são os principais acionistas e, assim, mandam no FMI, entendeu-se que o Fundo não entraria mais com os pacotes de ajuda financeira que resgataram tantos países nos últimos anos (México, 95, Coréia e outros Tigres em 1997/98, Rússia e Brasil, 98). Passaram-se alguns dias, entretanto, e o subsecretário do Tesouro dos EUA, John Taylor, tomou um avião para Buenos Aires. Foi lá dizer que a Argentina tinha todo o apoio de seu país e da comunidade financeira internacional. Pouco depois, o FMI liberou mais US$ 15 bilhões para o Brasil, um financiamento definido como preventivo, um seguro contra os possíveis efeitos da crise argentina. Finalmente, nos últimos dias, o FMI começou a preparar um novo financiamento para a Argentina. O que teria acontecido com toda aquela história de “moral hazard”? Simplesmente o que aconteceu em todas as situações práticas em que o problema apareceu: ninguém quer protagonizar o primeiro grande castigo aos maus devedores e credores. Isso porque quando se examinam as consequências concretas, não teóricas, o cenário é de arrepiar. Argentina, por exemplo. Sem ajuda externa, quem levaria o calote do governo? Certamente, os especuladores que, jogando no “moral hazard”, andaram enchendo o bolso com os juros astronômicos pagos pelos papéis argentinos de uns meses para cá. E também os bancos, nacionais e estrangeiros. É curioso que, neste ponto, ao argumento conservador – deixar quebrar os maus emprestadores – juntou-se uma posição que se diria de esquerda, mas talvez fosse mais bem definida como algo antiglobalização, anticapital financeiro. A propaganda é mais ou menos a seguinte: a Argentina seguiu a cartilha liberal (ou neoliberal, como queiram) de modo que a quebra do país e dos que o financiaram seria um golpe na economia de livre mercado. Gozado mesmo. O argumento conservador tem o objetivo de fazer valer o livre mercado. Sem a interferência pública – o financiamento do FMI – o mercado funcionaria livremente e se purificaria. O argumento antiliberal tem o objetivo de mostrar que esse mesmo mercado não funciona. Claro que os dois não podem estar corretos ao mesmo tempo. Na verdade, costuma ser o contrário. Quando duas posições opostas se encontram, o mais provável é que ambas estejam erradas. Mas, no caso, os dois lados precisam de uma mesma prova, a quebra da Argentina. Uma prova trágica. Quando se diz a quebra da Argentina, fica abstrato. Quando se coloca gente nessa história, fica diferente. Quem quebra? Além de especuladores e bancos, também têm títulos do governo argentino: os aposentados e funcionários públicos, que recebem parte de seu salário com os títulos; os clientes e fornecedores do setor público (pessoal que faz obras, toca serviços públicos e vende coisas – papel, cafezinho, remédios – para a administração) também pagos com papéis; fundos de investimento (onde está a poupança da classe média) e de pensão, obrigados por lei a adquirir os títulos públicos. Ou seja, quebrar a Argentina significa quebrar pessoas e empresas (e os empregados e fornecedores destas). Numa palavra, lançar os argentinos num sofrimento ainda maior do que o atual. E mesmo os bancos. Se estes quebram ou sofrem grandes perdas, danam-se também seus clientes, as pessoas que têm lá seus depósitos, sua poupança, sua vida financeira. Resumo da ópera: convém deixar de lado tanto o conservadorismo sem compaixão quanto a miopia antiliberal (antiglobalização etc. etc.) e arranjar logo o novo financiamento para a Argentina. Mesmo que a médio prazo a situação argentina seja insustentável, isto é, que sejam fatais a moratória ou a desvalorização ou as duas ao mesmo tempo, deve-se dar novo financiamento para que o país passe de modo menos doloroso pela crise. E, claro, também a comunidade financeira internacional tem o dever de apoiar a Argentina – negociar a moratória e ajudar a financiar as perdas da desvalorização. Além do mais, convém não esquecer: trata-se de um belo país, viável, povo capaz, uma democracia civilizada. Algumas coisas saíraram erradas em anos recentes, mas muita coisa deu certo. Melhor deixar o grande castigo para o próximo. Que tal quando for a hora de um país rico, lá do Norte, para que o castigo seja mesmo exemplar? (Publicado em O Estado de S.Paulo, 13/08/01)

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