. Contradição à brasileira
O problema do Brasil está na seguinte contradição: o crescimento depende de uma agenda liberal capitalista, que a cultura política dominante considera inaceitável. Tão inaceitável que o Partido da Frente Liberal, o único até aqui a assumir o nome, está pensando em mudar para Partido Democrático, que, aliás, nos Estados Unidos, está à esquerda.
Em tudo que acontece no país, aquela contradição aparece. Disse o presidente Lula que o Brasil não pode ter medo do crescimento e do aumento da demanda. Mas como não ter medo diante do que se passa com os aeroportos?
O que houve foi simplesmente um forte aumento da demanda nos últimos anos, especialmente depois da entrada das novas companhias, a Gol à frente. Caíram os preços, cresceu o número de passageiros, multiplicaram-se as rotas e o que aconteceu? A infraestrutura aeroportuária, totalmente estatal, não deu conta.
E não vai dar. O PAC prevê investimentos de R$ 3 bilhões em 20 aeroportos. Mixaria. Estudo recente do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) calcula que só Congonhas e Guarulhos precisariam de R$ 7 bilhões para atender à demanda crescente. O governo não tem esse dinheiro.
Logo, qualquer empresa que esteja no ramo do transporte aéreo, ou que dependa dele, vai pensar duas vezes antes de iniciar novos investimentos.
Qual a saída?
Está na cara: um imenso programa de privatização. É possível conceder à iniciativa privada não apenas aeroportos atuais como a construção e gestão de novos. Está sobrando dinheiro no mundo, com investidores à procura de bons negócios. Há empreiteiras, inclusive brasileiras, com experiência comprovada na construção e operação de aeroportos. E há aeroportos administrados por empresas privadas funcionando bem em vários países.
Qual o problema, portanto? Se as companhias aéreas e os passageiros não pagassem taxas no Brasil, se o governo oferecesse a infraestrutura de graça, ainda se teria um argumento. Mas não é assim. Companhias e passageiros pagam taxas e muito caras. Capaz até de caírem com uma boa administração privada.
Outro (falso) argumento contra a privatização diz o seguinte: há aeroportos que são ou podem ser rentáveis e outros, pelo interior afora, que nunca o serão. E aí vem o que se imagina ser um xeque-mate: o governo vai entregar o filé para a iniciativa privada e ficar com o osso?
Falsa questão porque o governo hoje não tem os recursos necessários nem para o filé nem para o osso. Logo, é negócio vender o filé e assim fazer o dinheiro para, quem sabe, transformar os ossos em coxão duro.
Também se pode fazer venda casada: o comprador leva um filé com osso. Algo assim: quem ganhar a licitação de Congonhas ou de um novo aeroporto em São Paulo, os mais rentáveis, leva de contra-peso um campo de pouso num lugar qualquer.
Só não pode fazer como, no fundo, quer o pessoal do governo Lula: entregar a concessão mas com tais regras que a concessionária não possa ter lucros. Em outubro de 2003, o processo de concessão de rodovias federais foi suspenso porque o governo queria baixar o valor dos pedágios. Três anos depois ? três anos! – o Ministério dos Transportes entregou o novo modelo para o gabinete do presidente Lula.
Foi devolvido. Acharam que as empreiteiras iam ganhar muito dinheiro, coisa que, como se sabe por aqui, é pecado mortal.
Assim, as estradas estatais continuam tão precárias quanto os aeroportos. Foi a mesma história: o país cresceu, pouco, mas cresceu, as exportações, que demandam transportes, decolaram e a infraestrutura não deu conta. Aí vem o PAC prometendo que agora vai, que o governo, finalmente, fará os investimentos necessários. Como confiar nisso se não conseguiram nem recapear estradas nem tirar a borracha da pista principal de Congonhas? O PAC também se propõe a ?orientar? os investimentos privados acessórios ao programa governamental. De novo, como acreditar nisso se o governo não consegue nem orientar seu próprio pessoal para destravar licenças ambientais ou redigir um simples edital de licitação? O governo Lula se orgulha de ter ampliado os programas de distribuição de renda e considera isso sua missão prioritária. Não é ideal. Educação deveria ser a prioridade máxima. É a boa escola que tira as pessoas da pobreza. Mas tudo bem. Entregar dinheiro aos pobres é melhor do que muitos outros gastos. O governo poderia se concentrar nisso e conceder toda a infraestrutura à iniciativa privada. Se bem que, desconfio, um bom banco privado seria mais eficiente na distribuição e fiscalização dos cartões do Bolsa Família. Reparem, entretanto, não tem nenhum partido ou força política relevante propondo a agenda de privatizações. Ficam disputando o cobertor curto do PAC. Publicado em O Globo, 08 de fevereiro de 2007