. Demora, mas há esperanças
Corria o ano de 1985, quando jovens economistas e jornalistas ligados ao MDB faziam uma explanação para Ulysses Guimarães, a respeito de modernos conceitos econômicos, inclusive privatização. Sim, caro leitor, cara leitora, já havia quem falasse disso naqueles tempos.
Lá estavam os jovens quadros doutrinando o grande líder da democratização: não faz sentido o Estado ser dono de hotéis; nem produzir minério de ferro e aço, ainda mais com empresas que só dão prejuízos. Ulysses só ouvia. Estaria concordando? Pareceu que sim, foi o entendimento de alguns. Avançaram. ?No limite, dr. Ulysses, não há necessidade do governo ter uma empresa petrolífera, nem mesmo bancos?.
Passaram do ponto, claro.
O comandante encerrou a conversa, avisando: ?Os amigos vão levar muito tempo para me convencer disso?.
Em 1988, Ulysses ainda não estava convencido. Tanto que comandou a elaboração de uma Constituição nacionalista e estatizante.
Se estivesse vivo, teria aprovado as grandes privatizações do governo FHC, na segunda metade dos anos 90?
O fato é que, em 1985, a reação de Ulysses resumia o pensamento dominante entre os políticos e as lideranças brasileiras. Dez anos depois, não se pode dizer que a privatização era um clamor popular, mas houve base política e social para aprová-la no Congresso e realizá-la em larga escala.
Mas por que estamos dizendo isso?
Para lembrar mais uma vez que as coisas no Brasil são assim mesmo, demoradas e, em geral, atrasadas em relação ao resto do mundo. Mas um dia saem, como o país ainda vai acabar resolvendo o problema das contas públicas, hoje a grande questão nacional.
É verdade, por outro lado, que a privatização está abandonada, órfão de pai, mãe e parteira. Também acontece: recaídas. Mas pelo menos ninguém está propondo reestatizar tudo, de modo que o essencial permanece. O que privatizado foi, privatizado permanece.
Aconteceu igual com a inflação. O país só conseguiu dar o tiro mortal em 1994, com o Plano Real. Seus autores ainda tiveram que gastar muita saliva para explicar os benefícios da estabilidade da moeda, mesmo sabendo-se que o mundo todo, desenvolvido e emergente, já havia resolvido esse problema.
Na verdade, quando o Brasil fez sua primeira tentativa, em 1986, com o Plano Cruzado, muitos países se mobilizavam contra a inflação. Foram ganhando as batalhas até que, entrando nos anos 90, sobravam uns poucos com moeda deteriorada, sendo o Brasil o mais importante nesse grupo.
A demora tem custos. Atrasa o desenvolvimento e torna o problema cada vez mais difícil, pela persistência e pelos inúmeros mecanismos criados para conviver com ele ? caso clássico de nossa correção monetária e consequente indexação de preços. Quebrar isso foi a parte mais difícil do Real ? e ainda restam indexações a eliminar.
Mas hoje se discute se a inflação ideal é de 5% ou de 3% ao ano, o que é um evidente avanço.
E assim chegamos ao tema atual das contas públicas. Menos de 20 anos atrás, o país saudou uma Constituição que declarou tudo ? educação, saúde, salário mínimo, aposentadoria, escola gratuita para os filhos, assistência social, emprego – ?direito do cidadão e dever do Estado?. Não esqueceram nem da cultura. Está lá, no artigo 215: ?O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional?.
Na ocasião, algumas poucas vozes, como a de Mailson da Nóbrega, alertaram: isso aí vai levar a um brutal déficit público. Foram massacradas.
Com um mínimo de contas, ficava na cara que o Estado não teria recursos para cumprir tudo que a Constituição prometia. Mas sucessivos governos e congressos tentaram.
E assim o país passou 18 anos construindo essa monumental encrenca das contas públicas. A sociedade sofre com uma brutal carga tributária e ainda tem de desviar poupança privada para financiar a dívida pública. E os sagrados direitos de todos?
Enfim, demorou mas hoje, pelo menos, há um amplo entendimento de que temos um problema com as contas públicas. De novo estamos atrasados. Não por acaso, quando se compara o Brasil com os principais países emergentes, verifica-se claramente a nossa desvantagem: as pessoas e as empresas aqui pagam muito mais impostos, recebem serviços que se não se pode elogiar (nossos alunos, por exemplo, pegam os últimos lugares nos testes internacionais, inclusive de cultura) e a infraestrutura que o Estado deveria oferecer é precária.
É sobre isso que se forma o entendimento. Daí para as medidas de correção vai uma enorme distância ? como se está verificando, na prática, com as dificuldades do governo Lula em montar um pacote de corte que procura combinar corte de gastos de custeio para poder reduzir impostos e aumentar os investimentos públicos. Essa combinação está corretíssima, mas onde cortar?
Assim como foram criados mecanismos que, de certo modo, perpetuavam a inflação elevada, também no caso das contas públicas foram levantadas estruturas que tornam os gastos praticamente irredutíveis. Formou-se uma imensa clientela do Estado, corporações e setores que montaram proteções ao longo do tempo.
Desmontar tudo depende de ação política, a ser exercida por um presidente fortalecido. Só um FHC formado pelo sucesso do Real poderia avançar com as privatizações e as reformas, sobretudo da previdência.
O presidente Lula, com sua inequívoca reeleição, tem essa força necessária para começar a dissolver o dilema das contas públicas. Terá a disposição? A princípio, não parece.
Mas se ele se convencer de que o crescimento não virá sem um arranjo novo para o déficit público, então pode agir. Esse primeiro pacote, de todo modo, deve ser pífio, embora não se possa desprezá-lo de todo. Bastará criar alguns mecanismos para impedir nova deterioração das contas públicas. Neste momento, parar de piorar já estará muito bom.
E para terminar com um sopro de esperança, convém lembrar que problemas antigos e difíceis podem ser resolvidos rapidamente quando a necessidade aperta, como está apertando no momento: ninguém se conforma com o baixo nível de crescimento do Brasil. Só falta mais uma conclusão. Publicado em O Estado de S. Paulo, 20 de novembro de 2006