O PT JÁ MUDOU, A VER SE MUDA O BRASIL

. Antes do Brasil, mudou o PT Se Armínio Fraga era a raposa que ia tomar conta do galinheiro, o que dizer de Henrique Meirelles? Se o atual presidente do Banco Central havia sido diretor do Fundo de Investimentos Soros, o próximo foi presidente mundial do BankBoston, uma “raposona” que ocupava posto de comando naquilo que documentos do PT classificavam como “capitalismo financeiro globalizado” – ou seja, o demo. Com toda evidência, se Meirelles estará no futuro governo Lula, então esse governo estará a milhares de anos luz daquele descrito no documento “Ruptura Necessária”, aprovado há exatamente um ano, em dezembro de 2001, durante o XII Encontro Nacional do PT, realizado no Recife: “A implementação de nosso governo . . .representará uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado . . .” De maneira que o rico episódio da semana passada permite duas leituras. Na primeira pode-se recuperar a linguagem petista e esquerdista do tempo da nomeação de Fraga – início de 1999 – e dizer que Lula, José Dirceu, Antonio Palocci e Aloizio Mercadante, fiadores de Henrique Meirelles, venderam-se ao capitalismo financeiro globalizado, aos EUA e ao FMI. É mais ou menos a leitura do ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, da corrente petista Democracia Socialista, para o qual seria melhor que Lula nem assumisse se for para “seguir os humores do mercado”. A menos, ressalva Pont, que Meirelles tenha dado uma guinada de 180o , o que não aconteceu, consideradas as mais recentes declarações do presidente indicado do BC. A segunda leitura é reconhecer que as acusações dirigidas a Fraga eram tão equivocadas antes quanto o é a aquela primeira leitura, hoje. Nem Fraga era um agente do capitalismo financeiro global infiltrado na equipe econômica de FHC, nem esse será o papel de Meirelles. Só pode ser esta a leitura que fazem Lula e seus principais colaboradores, ainda que não possam, por ora, dar-lhe todas as letras. Trata-se de uma mudança importante, embora, de certo modo, possa ser considerada uma leitura tardia. Se, durante a campanha e logo depois da eleição, Lula e seu pessoal tivessem poupado Fraga de críticas tão injustas quanto desnecessárias – e, às vezes, ofensivas (“vai procurar emprego em janeiro”) – teriam ao menos amenizado a desconfiança dos meios econômicos em relação ao futuro governo. E, assim, poupado uns bons centavos na taxa de câmbio. De fato, se o novo nome é o banqueiro Henrique Meirelles, que começará trabalhando com a equipe montada por Armínio Fraga, então Fraga poderia perfeitamente ter ficado, para enorme traquilidade dos mercados. Para muitos analistas, esse foi o grande equívoco do PT na transição, assim como Palocci – com seu discurso econômico ortodoxo – foi o grande acerto. Mas talvez tenha sido um equívoco inevitável. O documento “Ruptura Necessária” tem apenas um ano. Doze meses atrás, a linha oficial do PT sustentava: “Um governo democrático e popular precisará operar uma efetiva ruptura global com o modelo existente . . .Será necessário denunciar do ponto de vista político e jurídico o acordo atual com o FMI, para liberar a política econômica das restrições impostas ao crescimento . . .” Não há medida para avaliar a distância que vai disso à carta que Antonio Palocci distribuiu aos banqueiros na semana passada, durante reunião em Nova York. A distância foi percorrida em plena campanha eleitoral, durante a qual o futuro governo, na prática, assinou o acordo com o FMI e jurou mantê-lo por quanto tempo for necessário. Assim, de fato, se a conversão tivesse ocorrido antes, boa parte da crise financeira teria sido evitada. Mas talvez a cúpula do PT não conseguisse fazer mais rápido. Não se pode esquecer que na mesma reunião do Recife que aprovou o “Ruptura Necessária”- hoje letra sepultada – Lula foi autorizado a formar a aliança à direita, que viria a ser a chapa com o PL tendo o empresário José Alencar. Talvez o documento radical tenha sido uma cortina de fumaça para que a esquerda e os desconfiados do partido não enxergassem quão significativa seria a aliança com o PL/Alencar – o ponto de partida de um caminho inexorável na direção do centro e da moderação. Mas não se pode dizer que desde aquele momento Lula, Dirceu e Palocci já soubessem que poucos meses depois estariam assinando o acordo com o FMI. Em política, frequentemente você sabe a direção – às vezes nem sabe, apenas intui – e o resto vai se fazendo durante o caminho. Em resumo, se o processo de moderação estivesse completado antes do início da campanha, o país teria pago um preço econômico-financeiro bem menor para eleger Lula. Mas o tempo da mudança tem seu próprio ritmo. Não se pode esquecer que, em alguns governos de esquerda, a mudança ocorreu já no exercício da administração, como foi o caso de François Mitterrand em 1982, com desastres econômicos infinitamente maiores e de conserto mais complicado. E em outros casos, a mudança nem ocorre, como é a triste situação de Chavez na Venezuela. Em resumo, passado para trás, o importante agora é notar que, passo a passo, o PT se exibe cada vez mais como esquerda democrática e moderna que, pelo mundo afora, combina política econômica clássica, conservadora mesmo, com mais intervenção no mercado e políticas públicas destinadas a reduzir a pobreza e a desigualdade entre as pessoas. Mas sem ferir os fundamentos da democracia e da economia de mercado. São governos que ora funcionam, como o de Blair, ora dão errado, como na Itália recentemente, mas por capacidade ou incapacidade administrativa e política, e nunca em razão de sua opção ideológica. E com isso o debate de política econômica no Brasil começa a se afastar do campo ideológico. O país não vai crescer porque o governo Lula abandonará a suposta política monetarista neoliberal de FHC/Malan/Armínio, supostamente destinada apenas a pagar juros para o BankBoston e outros bancos, para adotar, com vontade política, o espírito de crescimento. O país vai crescer se o novo governo mantiver o superávit primário e melhorar a qualidade das contas públicas, como diz Palocci; bloquear a indexação salarial para barrar a inflação; sustentar o acordo com o FMI, ganhar confiança e derrubar um pouco o dólar; e sobretudo, avançar nas reformas da Previdência, tributária e trabalhista, prioridades anunciadas por Lula. Assim, conseguirá aumentar a poupança pública, melhorar a produtividade da economia, reduzir o risco Brasil e, pois, reduzir os juros de forma consistente. Coisa que qualquer governo competente deveria fazer. Mas não é fácil ser competente. De todo modo, é esse o jogo daqui em diante – da competência. O PT fez a campanha sob a proposta da mudança. O PT já mudou. A ver se seu governo consegue mudar o Brasil. Publicado em O Estado de S.Paulo, 16/12/2002

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