GOVERNO LULA APRESSA AS REFORMAS

. Na boa ou na marra Com o envio das reformas ao Congresso, o governo quer marcar um gol de placa. Se preciso, enquadrando ou até esmagando a oposição interna no PT O presidente Luís Inácio Lula da Silva tem pressa na votação das reformas tributária e da Previdência. Essa atitude decorre de uma tese que circula no Ministério da Fazenda e que, parece, foi inteiramente comprada pelo presidente: basta emplacar uma boa reforma, especialmente se for a da Previdência, que o risco Brasil despenca para nível parecido ao do México, país classificado como “investiment grade”. Nesse grau, o Brasil passaria a receber investimentos estrangeiros não especulativos, os juros locais cairiam para taxas civilizadas, tudo impulsionando um ciclo de crescimento, ambiente no qual tudo se resolve. Não por acaso, a reforma da Previdência, levada pelo presidente, em mãos, ao Congresso Nacional, é mais completa do que a tributária. Mas também esta última, embora limitada, precisa ser aprovada ainda neste ano, no cronograma do governo. Em termos de dinheiro, é até mais importante votar a reforma tributária antes de 31 de dezembro, pois seu texto inclui medidas que garantem receita já para 2004. A aposta do governo, portanto, está feita: emplacar não uma, mas duas reformas no primeiro ano. Muita gente acha que não vai dar e que já seria um sucesso se o conjunto estivesse aprovado no decorrer de 2004. Mas como o próprio Lula tem dito, nesse ano tem eleições, municipais, circunstância em que o entendimento suprapartidária necessário para a votação das emendas constitucionais dá lugar à luta pelos votos. Mãos à obra, portanto. O presidente antecipou o envio das propostas, que agora começam a tramitar pela Câmara dos Deputados. O primeiro passo é o aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que não opina sobre o mérito das matérias, mas apenas determina são ou não constitucionais. Uma encrenca possível é a taxação dos servidores inativos que, pela proposta Lula, devem passar a pagar 11% de contribuição previdenciária para a parcela que exceda os R$ 1.058 (exatamente a faixa de isenção do Imposto de Renda). Mas quem vai levantar a inconstitucionalidade? Primeiro, é claro, os radicais do PT ligados às associações e sindicatos de funcionários. Mas esses, tudo indica, serão impiedosamente esmagados. No início da semana, já circulava pelos corredores do Congresso que a direção do PT pretendia retirar todos os seus radicais das comissões pelas quais passarão as reformas. Além da CCJ, as propostas tramitam em comissões especiais. Estas examinam o mérito e redigem o texto que vai a votação em plenário. O processo se dá primeiro na Câmara e depois no Senado. Afastados os radicais e outros dissidentes da base governista, discretamente lembrados que seus partidos podem perder ministérios, restam os partidos da oposição, PSDB e PFL, e aqueles que estão no muro, o PMDB e o PP (ex-PPB). Mas conforme uma pesquisa detalhada do jornal O Globo (04/05/2003), nesses partidos encontram-se 128 deputados que já votaram pelo menos uma vez pela contribuição dos inativos. Não quer dizer que votem de novo, mas quer dizer que não manifestam oposição de princípio. Podem manifestar oposição partidária, daquele tipo que fazia o PT, só para atrapalhar o governo. Essa oposição é mais fácil para compor e, de todo modo, por enquanto só o PFL, ou parte dele, parece disposto a entrar pelo caminho da obstrução intensiva. O presidente da CCJ da Câmara, o deputado do PT de São Paulo, Luiz Eduardo Greenhalgh, disse que espera ter os dois relatórios (da previdência e tributária) aprovados em trinta dias, contados a partir de 6 de maio. Inicialmente, ele havia previsto até 45 dias. Conversou com o ministro da Casa Civil, José Dirceu, o articulador (ou trator, segundo alguns) do processo de tramitação, e já deixou por trinta. O líder do governo na Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP) continua dizendo que duas semanas são suficientes. O governo mantém a pressão pela pressa. Já o deputado Eduardo Paes, PFL-RJ, disse que seu partido vai solicitar audiências públicas, aquelas intermináveis reuniões com especialistas. Pretende chamar, entre outros, o ministro da Integração, Ciro Gomes, sob a alegação de que ele manifestou divergências em relação ao projeto de reforma tributária. Provocação, é claro, que, entretanto, pode ser barrada na CCJ, dependendo dos outros partidos que não estão no governo. Isso, dando de barato que Lula, na persuasão ou na força, colocará toda a base governista a favor das suas propostas. Se isso não acontecer, os parlamentares que não pertencem à base terão um sólido pretexto para negar seu voto a medidas polêmicas, mesmo que as tenham aprovado anteriormente. Se, inversamente, o governo Lula entrar no jogo unido, é muito provável que apenas o PFL, ou parte dele, faça oposição organizada. O PMDB, como sempre, vai se dividir. O PP está de namoro com o governo e, na imensa maioria, votou pelas reformas com FHC. O PSDB governa estados importantes que precisam, especialmente, ajustar as contas da Previdência. Sem contar que os tucanos sustentaram a agenda de reformas por oito anos. O ambiente é muito diferente das legislaturas anteriores. As reformas sofriam, então, a oposição organizada e aguerrida do PT e dos demais partidos de esquerda. A resistência se espalhava do Congresso para a imprensa e daí à sociedade. Hoje, está aberto o caminho para se formar um amplo consenso favorável às mudanças, isolando-se os grupos e corporações diretamente interessados. Não será simples, mas a perspectiva de sucesso é rara, especialmente se o governo Lula conseguir avançar na tese defendida em propaganda na tevê: as reformas são uma questão de justiça social, de eliminar os privilégios das aposentadorias elevadas e não cobertas por contribuições. São as ironias da história: a reforma da Previdência agora é de esquerda. Do ponto de vista técnico, no que se refere ao regime dos funcionários públicos, inclui medidas corretas: aumento da idade mínima de aposentadoria, fixação de teto, regras muito difíceis para a obtenção de vencimento integral, praticamente eliminado, redução das pensões, e teto para os salários no serviço público, que limita os proventos dos inativos ou dos que já têm o direito. É a receita de qualquer reforma da Previdência – e há muitas em andamento pelo mundo: fazer com que as pessoas trabalhem mais tempo e se aposentem com benefícios limitados, pela simples e boa razão de que não há dinheiro para mais. Já a reforma tributária saiu parcial, uma vez que não foi possível, no tempo curto, conciliar divergências entre os três níveis de governo, federal, estadual e municipal, que dividem a arrecadação. O ponto mais importante, para o dia a dia das empresas, é a unificação da legislação do ICMS (contra os atuais 27 códigos estaduais) e a redução do número de alíquotas. A mudança da cobrança do imposto da origem para o destino ficou para ser debatida mais tarde. Mas a transformação da CPMF em permanente é para já. Está no projeto de emenda constitucional, com alíquota variando de 0,08% a 0,38%, a ser fixada em lei ordinária. Se não se votar essa lei, vale a maior, 0,38%. Também está na proposta a famosa DRU (Desvinculação das Receitas da União), truque inventado pela equipe econômica de FHC, logo no lançamento do Plano Real, e que se destina a reduzir a quantidade de recursos que o governo federal é obrigado a gastar. É instrumento essencial para a administração do caixa federal e, pois, para a geração do superávit primário, pedra de toque do ajuste das contas públicas. Ambas, CPMF e DRU, expiram neste ano. Ou seja, se não forem aprovadas, agora em caráter permanente, o governo federal perde receita e margem de manobra. Mais uma razão para correr. Tudo considerado, pode-se dizer que, vista de hoje, a reforma da Previdência deve ser aprovada até mais rapidamente (pois imune às disputas com governadores e prefeitos) e mais ou menos do jeito que está sendo proposta, inclusive com a contribuição dos inativos. Já na reforma tributária, a unificação do ICMS e perenização da CPMF e DRU são os pontos mais prováveis, especialmente se o governo Lula topar distribuir algo mais para Estados e municípios. Aqui o PFL e o PSDB podem exercer um papel importante, o de bloquear tentativas de aumento da carga tributária. O governo tem dito que não pretende fazer isso e, na administração do Tesouro, de fato tem conseguido elevar o superávit primário sem aumento de impostos. Portanto, com redução de despesas. Mas nenhum governo resiste à tentação de faturar uns bons trocados quando entra numa mudança legislativa tão ampla que permite enfiar uma boa mão de gato no bolso dos contribuintes. Parlamentares da oposição já localizaram algumas e prometem barrar as demais. De todo modo, Lula tem grande chance de obter a tempo as suas duas reformas, uma de verdade, outra meia-sola, mas de bom sapateiro. Se até então estiverem mantidas as bases da atual política econômica, o presidente e seus assessores peladeiros poderão comemorar no campinho do Planalto um verdadeiro gol de placa. É correr para o abraço. Será mantida a atual política econômica? O ministro Antonio Palocci conseguirá manter sua incrível taxa de acerto? A resposta aqui, de novo, depende mais de questões internas do que da oposição externa. O caso mais recente é o bate-boca, dentro do governo, em torno da cotação do dólar. Não é desencontro ou falta de organização, mas militância de um e outro lado. Palocci e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, insistem no regime de metas de inflação com câmbio flutuante, pelo qual o BC opera a taxa de juros com o objetivo de controlar a inflação. E ponto. Nada de tentar fixar ou definir bandas de variação da taxa de câmbio. Mas a cada vez que dizem isso, imediatamente vem a público o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, para sustentar que o dólar a menos de R$ 3,00 derruba as exportações, de modo que o BC deveria impedir a excessiva valorização do real. Também defende essa tese o senador Aloizio Mercadante, líder do governo no Senado, e que era o principal economista do PT antes do surgimento da vocação do médico Antonio Palocci. Embora líder governista, Mercadante, do alto de seus 10 milhões de votos, tem o direito de manifestar suas posições independentemente. Mas o que dizer de ministros? Além de Furlan, que é o mais ativo na cruzada contra a valorização do real, também Roberto Rodrigues, da Agricultura, comentou que o dólar a menos de R$ 2,80 atrapalha as exportações do crucial agronegócio. Ministros são da confiança do presidente e se eles continuam falando o que falam só poder porque o presidente deixa o debate correr. Por que faria isso? Os economistas da equipe de Palocci, que não pertencem ao PT, andaram manifestando ao ministro sua inquietação com tais debates e contestações, que certamente comprometem a percepção da política econômica. Resposta de Palocci: “Cuidem da economia, que do PT, entendo eu”. E explica: quando há um debate, vale tudo, inclusive declarações pela imprensa. Aliás, parece ser a primeira coisa que faz um petista insatisfeito com seu governo: vai para a imprensa. Mas isso, segundo Palocci, tem um limite, que é a decisão do partido ou, agora, do governo. No caso, assegura, a decisão é pela política econômica em vigor que é a “política do presidente”. É fato que Lula, depois de dar uma declaração na linha Furlan/Mercadante, se corrigiu e disse que a cotação do dólar é determinada pelo mercado (o mercado, quem imaginaria!). Acrescentou que o “dólar bonito” é o estável, tese repetida por Palocci e Meirelles. Lula também tem comemorado os resultados de mercado, como a queda do risco Brasil, um conceito abstrato que foi parar no palanque. O presidente comemorou os 700 pontos, disse que logo cairia para “600, 500” e que num futuro próximo o Brasil deixaria de ser um “país de risco”. Eis a tese da Fazenda: superávit primário, combate à inflação com o regime de metas e câmbio flutuante e mais as reformas para o Brasil ganhar o grau de investimento. Portanto, até aqui, vale o dito de Palocci: tem bate-boca, mas a linha do partido e do governo está clara e mantida. O pessoal do mercado, entretanto, andou comprando dólares e devolvendo a cotação para cima dos R$ 3,00 na primeira semana de maio, por via das dúvidas geradas pelo debate. Mas continua acreditando que a linha Palocci é a linha Lula. Não é uma crença sem fundamentos. Quem já participou de governos, sabe que o presidente logo divide seus colaboradores em duas grandes alas: a dos que trazem boas notícias e a dos outros. Imaginem a situação. Toca o telefone no terceiro andar do Planalto, a secretária informa: Presidente, o ministro Roberto Amaral (ou Miro Teixeira, ou Gilberto Gil, com a bomba dos patrocínios culturais, ou a ministra Dilma Roussef). O presidente vacila: é encrenca, disputa para arbitrar, rolo a desatar com outro ministro. Agora a outra cena: presidente, o ministro Palocci na linha. Lula atende na hora e vai saboreando: o risco Brasil está abaixo dos 800 pontos, pela primeira vez temos superávit nas contas externas, captamos um bilhão de dólares, o pessoal adorou as reformas, o FMI vai liberar o dinheiro. E a inflação? – pergunta o presidente. Palocci, modestamente, se desculpa: está caindo menos que a gente esperava. O presidente anima o colaborador: Mas tudo bem, o importante é que está caindo, não vamos nos afobar. E o dólar, hein? Que problema bom esse de cair demais, hein? Palocci aproveita a dica para encaixar a tese de que precisa do dólar barato mais algum tempo para ajudar na queda da inflação – claro, diz Lula – e aproveitam para engatar uma conversa sobre futebol. Imaginação à parte, a política econômica depende de manter os resultados positivos que vem alcançando até aqui. A bola da vez é a inflação dar sinais de queda mais acentuada, o que permitirá iniciar a redução dos juros. Isso e mais uma firme tramitação das reformas e o BC até poderá começar a intervir na cotação do dólar que ninguém vai estranhar. Resumo da ópera: enquanto Lula continuar atendendo alegremente os telefonemas de Palocci, tudo bem. Publicado na revista Exame, edição 792, data de capa 14/05/2003

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