Do negacionismo às negociatas
Carlos Alberto Sardenberg
Vamos colocar a história na devida ordem: o presidente Bolsonaro confessa implicitamente que prevaricou.
Eis a sequencia recente: o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, leu nota oficial na CPI da Covid afirmando que Bolsonaro pediu ao então ministro Pazuello que investigasse a denúncia de corrupção na compra da vacina Covaxin. Ora, se pediu para investigar, está claro que o presidente recebeu a denúncia do deputado Luís Miranda.
Seguindo: essa versão, a terceira, furada, só foi apresentada em junho, três meses depois do encontro com o deputado, em 20 de março. E só apareceu porque o deputado revelou o fato, dizendo-se cansado de esperar por providências.
Mais: não tem nenhum documento mostrando que houve de fato a investigação, nem que a Polícia Federal foi acionada no momento do recebimento da denúncia.
Pior, o presidente não desmentiu que, ao receber a informação do deputado, comentou: isso é rolo do Ricardo Barros (líder do governo na Câmara). Essa frase revela que Bolsonaro sabe que seu líder é “roleiro” e ainda assim o mantém no posto.
Detalhe nada desprezível: a empresa que intermediou a compra da Covaxin é notoriamente ligada ao deputado Ricardo Barros, que mantem influência no Ministério da Saúde, comandado por ele no governo Temer.
E os documentos: o contrato de compra da Covaxin, o empenho da verba para pagamento e as três notas fiscais para antecipar o pagamento. Tudo isso com pressões diversas sobre a estrutura do Ministério para que o negócio saísse logo.
Que falta mais? Ah! Sim, o telefonema de Bolsonaro para o primeiro ministro da Índia, Narendra Modri, pedindo agilidade na liberação da vacina.
Tudo considerado, trata-se de uma confissão implícita do presidente Bolsonaro e de um monte de gente no entorno. A começar daqueles que disseram ter investigado, o general Pazuello e o coronel Elcio Franco, sem ter um mísero pedaço de papel para mostrar.
A isso tudo acrescenta-se a tremenda incapacidade do governo, provada por essa ridícula negociação com um cabo da PM de Alfenas (MG) para a compra de 400 milhões de doses da AstraZeneca.
Vamos reparar, pessoal: isso daria para vacinar toda a população brasileira! E sai do nada, de uma empresinha americana, representada por um desconhecido PM? O cara chegou a ser recebido pelo então secretário-executivo da Saúde, o coronel Elcio.
Seria engraçado – e é engraçado – não fosse o fato grave de revelar um submundo de negociatas de medicamentos e equipamentos. Um mercado paralelo, informal – onde as pessoas se conhecem só pelos primeiros nomes, não sabem de onde vêm, currículos, nada, e ainda assim têm acesso a altas autoridades do governo.
Negacionista, o presidente não queria comprar vacinas. Atrasou conversas com executivos formais da Pfizer, recusou a coronavac, desconfiou das AstraZeneca. E se tratava de medicamentos testados e aprovados em diversos países, negociados por executivos de farmacêuticas e institutos responsáveis e oficiais.
O então ministro Pazuello seguiu essas orientações negacionistas. E quando foi para comprar vacinas, aparecem esses picaretas e “roleiros”?
Assim se foi do negacionismo para as negociatas. O preço? Centenas de milhares de vidas que poderiam ter sido salvas se as pessoas tivessem sido vacinadas a tempo.
Não é só má administração, picaretagem, corrupção. É um conjunto de práticas assassinas.
A CPI da Covid avançou por terrenos inesperados. Sempre acontece. Sim, tem muitos picaretas também fazendo denúncias – mas o que queriam? Que as denúncias de roubalheira saíssem de quem está por fora?
Todos os grandes casos de corrupção têm isso em comum: começam com alguém que se sentiu prejudicado na negociata. Assim como a situação de Bolsonaro se complica na medida em que seus aliados de ocasião se sentem prejudicados.