DEVE-SE CONTROLAR A ENTRADA DE CAPITAIS?

. Voa, andorinha, voa O governo deve fazer o controle da entrada de investimentos externos para reduzir os riscos do capital volátil? Depende Para crescer é preciso investir. Para investir é preciso poupar. O Brasil, basicamente por causa do grande déficit das contas públicas, poupa algo em torno dos 20% do Produto Interno Bruto e precisaria de pelo menos mais uns cinco pontos percentuais para crescer a taxas entre 4% e 5% ao ano. Para acelerar no ritmo asiático, precisaria poupar algo como 30% do PIB por anos a fio. Portanto, fazer reformas para reduzir o déficit público, especialmente o da Previdência, é uma política de crescimento. Demora, porém, Daí o atalho do capital externo. Importar capital é investir com a poupança que sobra em outros países, de modo que o quadro fecha perfeitamente: a poupança dos mais ricos financia o desenvolvimento dos mais pobres. Portanto, o livre fluxo internacional de capitais também é uma política de crescimento. Com base nessa idéia, o Fundo Monetário Internacional passou décadas fazendo pressão para que os países liberalizassem seus mercados de capitais. Isso seria o complemento da livre circulação de mercadorias e serviços. Não se pode dizer que regra foi inteiramente cumprida. Assim como por toda parte persistem hoje restrições ao livre comércio, também a circulação de capitais é limitada, até em escala maior. Mas não há dúvida que os anos 80 e 90 foram marcados por amplos movimentos de liberalização, incluindo as reformas chamadas neoliberais. E onde estão o crescimento e a redução da pobreza? Os resultados foram positivos no período 1990/98, mas o desenvolvimento mostrou-se modesto em relação às décadas de 60 e 70. Já o período 1999/2002 foi desastroso para quase todos. Sobraram crises financeiras (México 94/95, Ásia 97, Rússia 98, Brasil 99 e 2002, Argentina 2000/01), com impactos terríveis sobre a economia real. Tudo culpa das reformas neoliberais, especialmente da abertura do mercado de capitais — tal foi a conclusão, com sabor de doce vingança, do pensamento econômico de esquerda. Solução: voltar às economias fechadas com forte intervenção e controle estatal. Já à direita, a conclusão era justamente o contrário: os países não haviam crescido porque as reformas ficaram pela metade, caso típico do Brasil. Os que mais avançaram no modelo liberal, como México e Chile, suportaram melhor as crises financeiras internacionais. Ou seja: não há nada de errado com a abertura comercial e financeira. A resposta de esquerda produziu mais barulho do que resultados concretos em termos de uma nova prática econômica. A campanha contra o neoliberalismo “pegou” em toda parte, paralisou as reformas e deu vitórias eleitorais. A maior delas foi, sem nenhuma dúvida, a de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas seu governo não guarda a mais pálida semelhança com um programa de esquerda tradicional. Ao contrário, dá sequência às reformas do setor público e seu ministro da Fazenda, Antonio Palocci, sustenta que não se deve controlar a entrada de capitais. Já a revista Economist, guardiã-mor do liberalismo, escreveu que no mundo contemporâneo há espaço para o controle de capitais, sobretudo no caso dos empréstimos de curto prazo. Isso porque, explica em sua edição de 3 de maio, “para muitos países em desenvolvimento, fluxos de capital sem restrições constituem um perigo que pode ser evitado”. Estaria tudo de ponta-cabeça? De certo modo, sim, mas há uma lógica nesta confusão. Estamos assistindo, nos dias de hoje, a uma derrubada das ortodoxias fechadas. Tome-se o caso do tratamento das doenças psíquicas. Melancolia, uma doença da alma, trata-se com sessões de psicanálise, diz esta ciência. Depressão, uma falha dos circuitos do cérebro, trata-se com remédios, diz a psiquiatria. Mas a prática e a reflexão têm mostrado a psicanalistas e psiquiatras flexíveis e sábios que a combinação das sessões de terapia com os remédios funciona melhor para o paciente. Vale também para o pensamento e a prática econômica contemporânea. Ortodoxo é dizer que se deve deixar tudo para o mercado ou para o Estado. Ou dizer que o fluxo de capitais deve ser inteiramente livre ou inteiramente controlado. Não esquecer: o último Nobel de economia foi para estudiosos, como Joseph Stiglitz, que se dedicaram a mostrar a importância das falhas do mercado. Mas, atenção, para esculhambar o mercado, esses economistas partem das virtudes do mercado livre, um ideal nunca atingido. A crítica principal de Stiglitz à ação do FMI tem justamente a ver com a pressão para a liberalização dos fluxos de capitais, considerada precipitada para os países em desenvolvimento, cujas bases econômicas internas, incluindo as instituições de controle e regulação, não estariam preparadas. Mais ou menos o que diz agora a Economist, admitindo que se trata de autocrítica com base na experiência dos últimos anos. Experiência que tem um detalhe importante: o Chile, considerado um modelo de reformas liberais, utilizou nos anos 90 um sistema de controle da entrada de capitais. Permanecendo menos de seis meses, o investimento pagava impostos elevados para deixar o país. Mas isso tudo não leva à conclusão de que todo o fluxo de capitais tem de ser restringido. É preciso saber de qual capital se trata, em quais condições está chegando ao país e quais controles funcionam. Na ponta positiva está o investimento direto estrangeiro (IDE), capital que se instala no país hospedeiro construindo ou comprando fábricas, imóveis, empresas de serviços. Na ponta perigosa, o capital de curtíssimo prazo, volátil, que se interna para aproveitar as generosas taxas de juro locais, que “los hermanos” chama, de capaitais “golondrinas” (andorinhas, que vêm e voltam). A forte e súbita entrada de capitais de curto prazo provoca, entre outras coisas, a valorização da moeda local, como tem ocorrido no Brasil neste momento. O que suscitou o debate: está na hora de impor controles? A resposta do governo tem sido um forte não. A argumentação, entretanto, não é ideológica, mas prática, digamos assim. Com a crise de confiança do ano passado, a economia brasileira perdeu nada menos que US$ 30 bilhões, incluindo desde dinheiro retirado até financiamentos cancelados. Daí o dólar a quase R$ 4,00. Com a recuperação da confiança graças à política econômica clássica do governo Lula, os capitais externos começaram a voltar. Como sempre, o que volta primeiro é o esperto dinheiro de curto prazo. Por isso, diz o ministro Palocci, com o apoio de muitos economistas, é preciso esperar mais um pouco. Primeiro, porque o país ainda está longe de ter recuperado o que perdeu no ano passado. Segundo, porque, pela lógica da história econômica, explica Palocci, os financiamentos se alongam suavemente, na medida em que a política do governo se mostra consistente. Isso já está acontecendo. Em janeiro deste ano, o prazo médio das captações externas feitas por bancos e empresas brasileiras era de 10 meses. Em maio já alcançava 14,7 meses, sem contar os prazos mais longos, de quatro anos para cima, obtidos pelo Tesouro, Banco do Brasil e Petrobrás. Se os prazos estão se elevando e se o país ainda não repôs o capital externo perdido, não é hora de impor controles, tal é a posição uniforme da equipe econômica. A propósito, lembra-se que o Chile eliminou os controles quando os capitais escassearam no mercado internacional. Mas isso não quer dizer que vai ser assim para sempre. O debate sobre o caso é importante, admite Palocci. E têm surgido muitas sugestões sobre ações que o Banco Central pode tomar, impondo direta ou indiretamente algum controle. É praticamente unânime a opinião segundo a qual o BC deve começar tão logo seja possível a redução da dívida interna indexada ao dólar. Também se recomenda fortemente que o banco compre dólares no mercado, de modo a reforçar suas reservas (algo aliás que o BC já anunciou que vai fazer ao longo deste ano). E, finalmente, no caso de uma entrada avassaladora de capitais curtos, como ocorreu na primeira fase do Plano Real, controle neles. Tirante a esquerda ortodoxa, é consenso que se deve controlar a entrada, nunca a saída de capitais. Resumo da ópera: ficou mais difícil fazer política econômica. Não há mais uma linha a ser seguida para sempre. Há idéias básicas (o capital estrangeiro é necessário, a liberdade extrema de capitais é perigosa, a moeda supervalorizada é tão perigosa quanto a superdesvalorizada) mas é preciso estar sempre avaliando as circunstâncias para saber qual o momento, e como, agir. O errado é aferrar-se a certas idéias. Se o mundo muda, é preciso mudar o pensamento, como fizeram Lula e Economist, vindo cada um de seu lado. Publicado na revista Exame, edição 793, data de capa 28/05/2003

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