A propriedade nos meios de comunicação

. Quando falta capital para um jornal sério Quase não sai na imprensa, mas tem havido demissões nas empresas de comunicação. Cortes na carne. A desaceleração da economia parece ter sido mais dura para o setor. Geralmente é assim. O gasto com publicidade é um alvo imediato quando as empresas começam a cortar despesa. O pessoal da mídia sempre argumenta que na crise, quando o mercado se estreita e aumenta a competição pelos consumidores, aí mesmo que se precisa anunciar. Tem lógica. E é o que fazem as empresas ou setores que partem para liquidações, como no caso dos fabricantes de automóveis. Mas são lances isolados. No geral, prevalece o argumento segundo o qual não se pode anunciar se o consumidor não tem dinheiro. E o peso de uma circunstância fatal: é simples cortar o gasto com publicidade. Basta um telefonema, alguma negociação, talvez, e está tudo cancelado. Assim, o setor de comunicação apanha feio nas crises, aqui e em qualquer outro país. Mas além desse fator conjuntural, há uma questão de fundo aqui no Brasil. As empresas jornalísticas são pouco capitalizadas e têm dificuldades para obter capital. Pela Constituição, artigo 222, essas empresas de jornal, rádio e televisão só podem ter como proprietários brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Pessoas físicas, portanto. Pessoas jurídicas podem participar do capital de empresas jornalísticas, mas no limite de 30%, sem direito a voto e desde que tais PJs, de sua vez, pertençam “exclusiva e nominalmente a brasileiros”. Resumindo o espírito da lei: um cidadão brasileiro (ou um grupo deles) pode montar uma empresa para publicar um jornal (uma rádio ou televisão). Mas com capital pessoal. Dinheiro do próprio bolso. Pode ter uma companhia não-jornalística como sócia, um banco, por exemplo, mas apenas se essa empresa for exclusivamente de brasileiros. Isso exclui, por exemplo, empresas que tenham estrangeiros como acionistas, ainda que minoritários. Além disso, tal companhia genuinamente verde e amarelo só poderá adquirir 30% da empresa jornalística e não terá qualquer direito na gestão. Convenhamos, em tais circunstâncias é muito difícil capitalizar a empresa jornalística.Mas essa restrição tem uma lógica. Direto ao ponto: grandes jornais sempre pertenceram a famílias que carregam o espírito jornalístico pelas gerações, como é o caso deste Estado. É preciso que a família tome como sua a missão de editar um jornal sério e independente, pois o negócio, como negócio, não é lá essas coisas. É muito caro produzir um bom jornal, mesmo nestes tempos de Internet que facilitou ao extremo a obtenção e transmissão de informações. Em diversos pontos da rede, é preciso ter repórter, redator, editor, fotógrafo, paginador. Em diversas circunstâncias, como na guerra, é preciso ter muitos jornalistas para cobrir um mesmo acontecimento, cada um deles escrevendo 30, 40 linhas, pequenas partes da história. Do ponto de vista de um administrador normal, digamos, a coisa é totalmente antieconômica. Você manda um repórter caro lá para o Afeganistão. O sujeito leva dias sem escrever uma linha sequer, só tentando chegar a um lugar onde encontre notícia quente. Quando chega, corre risco, faz um enorme esforço e consegue enviar uma bela matéria – 60 linhas que não ocupam nem uma coluna inteira de uma página. Por quantos reais saiu cada linha? Claro, guerra é exceção. Mas a produção de notícias segue sempre esse padrão gastador. O repórter fica até tarde da noite no estádio para mandar 20 linhas com o resultado e um resumo da partida. Repórter, fotógrafo, carro, motorista, filme, computador, máquina – um equipamento para cada repórter em ação. Considere ainda o jornalismo de investigação. Um ou mais repórteres podem ficar vários dias envolvidos numa apuração para depois dizerem na redação: não deu matéria, não era nada daquilo. Haja dinheiro. E mesmo quando o produto resulta bom, é difícil vender pelo preço justo. Aí entra o mercado, depende de quanto o leitor pode gastar no seu exemplar e de quanto as empresas podem pagar pela publicidade. Eis aí. Se um rapaz ou uma moça herda um jornal e não tem espírito jornalístico, o melhor que faz é vender e aplicar o dinheiro no mercado financeiro. Em resumo, o fato de o proprietário da empresa jornalística ser necessariamente uma pessoa física tem a ver com a independência do veículo. Os constitutintes de 1988 entenderam que se um grande banco, por exemplo, pudesse editar um jornal, esse veículo teria muito capital e nenhuma independência. Melhor, portanto, deixar a imprensa para as famílias de verdadeiros jornalistas brasileiros. Mas como sempre se faz neste espaço, convém complicar a história. A pessoa física que publica o jornal (ou coloca no ar a tevê ou o rádio) pode ser um político que quer o veículo apenas para alavancar sua carreira. Pode ser um achacador, que ameaça caluniar empresas e pessoas se não lhe pagarem. Pode ser um testa de ferro de interesses variados, inclusive de externos e eternos. Convenhamos, há muitos veículos assim no Brasil, circulando ao lado dos que são sérios, tradicionais e independentes. Não raro, aqueles veículos têm mais capital porque não ganham dinheiro com informação séria, notícia e entretenimento. E se é assim, então a legislação está falhando. O que acontece na realidade contraria o espírito da lei. As famílias que editam os tradicionais veículos e as pessoas sérias que querem entrar no ramo têm dificuldade em obter capital. E isso num negócio cada vez mais caro, sobretudo pela concorrência internacional. Hoje, na era do satélite e da Internet, o padrão de comparação é mundial. E a competição também, pois a Internet coloca todos os jornais do mundo ao alcance de todo mundo. Do outro lado, empresas sérias não têm condições de participar legalmente do capital de uma companhia jornalítica, nem estímulo econômico. Empresas e instituições não sérias podem fazê-lo via testas de ferro. Eis porque faz todo sentido mudar o artigo 222 da Constituição, de modo a ampliar a a propriedade e a participação de capital em empresa jornalística. Há um projeto em votação no Congresso, tema de um próximo artigo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 26/11/2001

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