SOBRE A DÍVIDA BRASILEIRA

. Artigos Quem leva o cano Vamos supor que o PT, os bispos e o MST consigam emplacar a proposta de um plebiscito perguntando ao povo se a dívida brasileira, externa e interna, deve ou não ser paga. Vamos supor que a ampla maioria diga que não – um resultado plausível já que perguntar aos devedores se querem ou não pagar é mais ou menos como perguntar se a pessoa prefere pagar ou almoçar de graça. A pergunta seguinte é esta: quem levaria o cano? Na verdade, esta deveria ser a pergunta inicial toda vez que se discute sobre a legitimidade de uma dívida. No caso, os autores da proposta se dispensam dessa questão porque acreditam saber a resposta: que os credores da dívida externa e da dívida pública formam um bando de banqueiros especuladores, classe improdutiva que vive dos juros tirado do sangue dos brasileiros. De modo que a proposta é, em vez de pagar esse bando, usar o dinheiro para comprar casa e comida e dar educação e saúde aos pobres. Como a realidade nem sempre é simples assim, convém dar uma olhada mais de perto. Dívida interna A dívida interna do setor público, hoje quase toda concentrada no governo federal, chega perto de RS$ 450 bilhões. A forma: títulos (letras do Tesouro e do Banco Central) que são vendidos em leilões semanais. Os compradores – os credores – são remunerados com os juros, o prêmio por financiar o governo. Os maiores compradores são os Fundos de Investimento Financeiro, os FIFs, que detêm hoje títulos no valor de R$ 180 bilhões (ou 40% do total da dívida). Mais R$ 6 bilhões estão em outros tipos de fundos. E quem aplica nesses fundos? Pessoas e empresas, que vão buscar remuneração para sua poupança e seu caixa. Ricos e grandes empresas certamente aplicam nesses FIFs. Mas quase toda a poupança da classe média está nesses FIFs. Igualmente, as pequenas e médias empresas encontram aí uma forma rápida e rentável de remunerar suas sobras de caixa ou o dinheiro que só será gasto no mês seguinte. A vantagem desses FIFs é que aceitam depósitos pequenos – 100, 200 reais – e a operação é facílima. Pode-se aplicar ou resgatar no caixa eletrônico, no home banking ou com um telefonema. Além disso, muitas empresas, as grandes,compram os títulos diretamente. São aí mais uns R$ 38 bilhões. Pessoas físicas também têm títulos em carteira, algo como R$ 2,2 bilhões. Eis aí a primeira conclusão: o calote seria surrupiar a maior parte da poupança das pessoas e das empresas brasileiras. Depois vêm os bancos e demais instituições financeiras – os alvos preferenciais do calote – que têm pouco mais de R$ 161 bilhões de títulos em suas carteiras próprias. Isso equivale a 35% da dívida pública total. Os bancos brasileiros são os grandes compradores. Têm hoje pouco menos de R$ 129 bilhões. Os estrangeiros têm cerca de R$ 33 bilhões. Mas nem sempre esse dinheiro é dos bancos ou só dos bancos. Exemplo: você recebe uma herança, digamos R$ 50 mil e ainda não sabe o que vai fazer. Enquanto espera, você vai ao seu banco e compra um CDB, Certificado de Depósito Bancário, que paga juros. Para lhe pagar, o banco tem que ganhar na outra ponta. E faz o que? Por exemplo, compra títulos do governo. Ou seja, o calote quebra os bancos – quebra preferencialmente os bancos brasileiros – mas também quebra boa seus clientes, pessoas e empresas produtivas. Há ainda algo como R$ 44 bilhões de títulos vinculados. Bancos e empresas, em certas condições, são obrigados a comprar títulos para depositar no BC ou dar em caução ou fazer depósitos judiciais. Se esses títulos viram papel pintado, o prejudicado é mais o governo. Dívida Externa A dívida externa brasileira de médio e longo prazo, em dados consolidados de dezembro de 1999, é de US$ 211 bilhões. O setor público (governos federal, estaduais e municipais, incluindo suas estatais) deve a menor parte, US$ 96 bilhões. O setor privado – empresas e bancos – deve US$ 115 bilhões. Do total da dívida, a maior parcela, pouco mais de 40%, é de empréstimos em moeda. Bancos e empresas estrangeiros são os maiores emprestadores, mas bancos brasileiros instalados lá fora têm uma pequena parte (captam recursos no mercado externo e passam para clientes brasileiros). De todo modo, seriam os grandes bancos estrangeiros os alvos preferenciais do calote. Agora, quais são os devedores? O governo tem uma pequena parte, mas o grosso são empresas e bancos brasileiros que tomam recursos no exterior. Sabem por que? Porque frequentemente é mais barato, os juros são menores. Com esse dinheiro, o governo construiu muita porcaria, como as usinas nucleares e a Ferrovia do Aço. Mas também coisas úteis: o aeroporto do Galeão, os metrôs de São Paulo e Rio, grandes estradas etc. No setor privado, muitos bancos brasileiros, quando dá, pegam dinheiro mais barato lá fora e aplicam em títulos do governo aqui, que pagam mais. Eles chamam essa especulação de arbitragem. Mas na maior parte os bancos pegam o dinheiro para financiar seus clientes aqui. Por exemplo: os bancos das grandes montadoras trazem dinheiro das matrizes e com isso financiam a venda de carros aqui. Ou seja, financiam o consumidor local. O calote aí, portanto, seria eliminar uma fonte de financiamento do consumo e do investimento. Importações A segunda maior parcela da dívida externa, algo como 35%, se destina ao financiamento de importações. Isso mesmo, o importador brasileiro compra alguma coisa lá fora e o vendedor providencia financiamento. Logo, se a gente der o cano nessa dívida, é claro que cessa a importação. É verdade que essa dívida financia a importação de Jaguar e outras coisas de rico, mas isso é uma parte mínima do comércio externo. O grosso das importações é de petróleo, trigo, máquinas e equipamentos, insumos e produtos intermediários para a indústria, medicamentos e por aí vai. No caso do governo, a maior parte das importações é financiada por organismos internacionais – como o Banco Mundial – e agências governamentais, que sempre emprestam para programas sociais, a custos favorecidos. Por exemplo: aquisição de vacinas, computadores para escolas, remédios etc. Há outra parte da dívida externa, esta totalmente do governo federal, que está em Bônus da República. São títulos que o governo vende no mercado internacional para fundos de investimentos e de pensões. Não honrar esses bônus, significa que o governo brasileiro está dando o cano nos aplicadores desses fundos – entre os quais estão especuladores como Georges Soros, mas também, professores públicos dos Estados Unidos, cujo fundo é um grande aplicador internacional. Soros que se dane, mas dar o cano nos fundos de pensão não chega a colaborar para a imagem internacional do país. Finalmente, a dívida externa de curto prazo é pequena, pouco mais de US$ 25 bilhões. Os devedores são basicamente bancos brasileiros privados, US$ 20 bilhões, e esse dinheiro em geral é linha de crédito para uso imediato, uma espécie de caixa. Também financiam importações, entre outros negócios. A boa e a ruim Muita gente vai dizer: a gente dá o cano na dívida bandida, não na dívida boa. O problema é que não dá para fazer essa distinção. No caso dos bônus, por exemplo, o Banco Central brasileiro não tem como saber quais papéis estão na carteira de Soros, quais nos fundos de pensão sérios. O mesmo vale para os títulos da dívida interna. Não há como saber qual papel está no Fundo onde o juiz Nicolau colocou seus trocados e qual título está no banco em que você aplicou sua indenização do FGTS. Idem para financiamento de importações. Os mesmos bancos que financiam o Jaguar, financiam também o petróleo e o trigo do macarrão. Assim, dar o calote nas dívidas apanha alguns especuladores e um monte de pessoas, empresas e bancos brasileiros, assim como paralisa negócios e importações. É simples assim, uma estupidez monumental. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 28/08/2000)

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