AS CHANCES DE SEGUNDO TURNO

. A coisa errada, na frente de muita gente     
A história é antiga e vale pela frase que ficou.     
Estamos em setembro de 1982, o então senador Franco Montoro, candidato a governador, conduz o MDB a uma vitória arrasadora em São Paulo. A poucos dias das eleições, em um momento de relaxamento num jatinho, voltando de mais um animado comício, Montoro pergunta a Mario Covas, candidato a deputado federal: –    
Acha que ainda podemos perder esta eleição? Covas: – Só se a gente fizer alguma coisa muito errada, na frente de muita gente. Pois o PT e os companheiros de Lula fizeram. Não quer dizer que o presidente vai perder a reeleição, mas quer dizer que eles fizeram a única coisa que poderia colocá-la em risco. A frase de Covas dizia isso: a oposição, os outros não poderiam fazer mais nada diante da votação consolidada de Montoro. Nessas circunstâncias, só mesmo o próprio Montoro ou pessoas muito próximas poderiam produzir os fatos negativos.     
Exatamente como agora. Muitos tucanos e pefelistas já haviam jogado a toalha e concentravam suas atenções em 2010. Quem conduziria a volta ao poder depois de oito anos de petismo, José Serra ou Aécio Neves? Esse já era o tema dominante, pois se entendia que Lula, sendo ele muito maior que o PT, não conseguiria formar um sucessor. O mercado e os meios econômicos pensavam do mesmo modo e estavam até animados com isso. Achavam que se formava no horizonte uma boa combinação para aprovar as reformas estruturais que haveriam de tirar o Brasil desse marasmo de crescimento baixo.     
Eis a lógica: reeleito, Lula certamente teria interesse em fazer um governo de crescimento econômico. Estando ele convencido da eficiência da receita Antonio Palocci (por cuja eleição o mercado torce abertamente) e dada a convergência de boa parte dessa receita com a de tucanos e pefelistas, estaria aberto o caminho para a formação, no Congresso,  das maiorias necessárias à votação de reformas (previdenciária, tributária, judiciária, política e microeconômica). Que estímulo teria a oposição para colaborar com tal projeto? Limpar a área, eliminar os entraves e deixar o país pronto para a arrancada de 2011. Simples, não? Aí vêm os ?malucos e imbecis? do PT, como classificados por Lula na entrevista de sexta à rádio CBN, e armam o grande desastre do dossiê. Como fica o quadro depois disso? É especulação, claro, pois tudo depende do andamento das investigações e, sobretudo, da divulgação de seus resultados. A origem do dinheiro é um fator crucial. Esclarecer isso está nas mãos do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, COAF, órgão do Ministério da Fazenda e que já se prestou a serviço duvidoso, quando expediu documentação alertando para a movimentação atípica da conta do caseiro Francenildo na Caixa Econômica Federal. Quer dizer, o COAF era capaz de estranhar os 30 mil do caseiro, mas não desconfiara dos milhões sacados no valerioduto. Pela lei, qualquer saque acima de R$ 100 mil deve ser comunicado, no mesmo dia, ao COAF. Em casos de saques abaixo disso, os bancos têm a orientação do Banco Central de também comunicar movimentações atípicas e/ou suspeitas. A comunicação bancos-COAF é eficiente, feita através do  moderno correio eletrônico do sistema do Banco Central. Pela numeração das notas, a Polícia Federal já havia identificado os bancos onde foram feitos os saques do dinheiro apreendido com os petistas que iam comprar o dossiê Vedoin. Um simples rastreamento nos comunicados expedidos pelos três bancos encontraria, se já não encontrou, os nomes de quem sacou e de quem pagou. O mesmo vale para os dólares. A polícia e o banco central dos Estados Unidos podem rastrear.  Portanto, essa informação só não virá a público rapidamente se o governo não quiser e/ou se  conseguir manobrar a Polícia Federal. É claro que o dano a Lula será tanto maior quanto mais próximo ele estiver dos que pagaram e dos sacaram. Se essa informação sair antes da eleição de 1o. de outubro é uma coisa, se sair depois, é outra. Acrescente-se a isso que o cenário externo deu uma piorada. Aumentou o temor de uma desaceleração mais forte da economia americana, o que reduziria a atividade pelo mundo afora. Se o consumidor americana compra menos, as fábricas chineses produzem menos e todos vendem menos. Qual o tamanho dessa desaceleração, ainda não se sabe. Mas se sabe que o cenário externo espetacular dos últimos quatro anos não se repetirá. Tudo considerado, como ficamos por aqui? Para muitos, não mudou o essencial. Lula ganha, talvez num segundo turno, e aí se recompõe aquele cenário de composição, o petista querendo fechar bem seus oito anos, os tucanos e pefelistas querendo preparar o país para sua volta em 2001. Parece muito otimista. O escândalo do dossiê é muito grave. Mostra, como  nunca, a sem cerimônia com que petistas ocuparam o aparelho de Estado e a falta de escrúpulo no uso do dinheiro público. Levaram ao limite a idéia de que os fins justificamos meios. Na sua defesa, Lula, de um lado, trata de se afastar dos seus ?loucos e imbecis?, mas, de outro, acirra a disputa ao denunciar uma conspiração das elites e da direita contra o operário do povo. Não tem pé, nem cabeça. Então os petistas, sozinhos, fazem a coisa muita errada e a culpa é das elites? Mas se Lula vencer com esse discurso ? e sabemos como discursos populistas podem pegar ? vencerá provocando uma forte cisão política. Será bem diferente da consagração que esperava antes do escândalo e que o colocaria, aí sim, em posição de liderar uma ampla coligação. Agora, ficou muito diferente. Mesmo que ele vença no primeiro turno, os inquéritos continuarão, os processos chegarão aos tribunais, o presidente precisará estar se defendendo o tempo todo, de novo recorrendo ao ?povão contra as elites?. Ele precisará, então, menos de reformas impopulares e mais de  Bolsa Família, salário mínimo e bondades para o funcionalismo, danem-se as contas públicas. Será o triunfo daquele pessoal que nunca gostou da política econômica. As oposições obviamente vão cobrar a conta ? e o ambiente se tornará hostil. Isso levará a uma paralisia política, um Congresso sem capacidade de negociação e decisão, como ocorreu desde a crise do mensalão. A coisa complicou. Publicado em O Estado de S. Paulo, 25 de setembro de 2006

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