. Lições chinesas Daqui a pouco vai fazer dois anos que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva assinou a Carta ao Povo Brasileiro para dizer basicamente três coisas: 1) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”; 2) “Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação”; 3) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país”. Ganhou e cumpriu. Não só preservou, como elevou o superávit primário, controlou a inflação com o regime de metas (e juros altos), não deu calote na dívida interna e externa, respeitou e depois renovou o acordo com o Fundo Monetário Internacional. O que querem mais? – poderia dizer o presidente Lula, com justa impaciência, quando os investidores de novo elevaram o risco Brasil acima dos 600 pontos, na semana passada, na sequência de um período de deterioração desse indicador, chegara a ficar abaixo dos 400 pontos. O que querem mais, se até o salário mínimo – o salário mínimo, meu Deus! – vai de novo sair pífio por causa do controle das contas públicas? – poderia repetir Lula na última sexta, ainda mais exasperado. Investidores, consultores, analistas, jornalistas, locais e internacionais, têm oferecido diversas respostas técnicas, que poderiam ser assim traduzidas: “Sabe, presidente, o senhor tem razão, o senhor até nos desculpe, mas sabe o que é? São os seus amigos, presidente. A gente conversa com eles, acompanha pela imprensa, e não passa um dia sem que um seu amigo, amigão do peito mesmo, proponha alguma coisa que pode esculhambar a política econômica”. Um dia, são propostas para melar o superávit primário. Outro, para dar um drible no acordo com o FMI. Depois, aumentar a meta de inflação. Ou ainda, mandar o Banco Central aplicar um corte de macho na taxa básica de juros. Quer dizer que nem se pode discutir esses temas? – reclamaria Lula. “Pode, claro que pode, presidente”, respondem os analistas, “mas nas atuais circunstâncias fica complicado”. E quais circunstâncias seriam essas? Basicamente, só uma importa: a permanente sensação (ou desconfiança) de que a adesão à atual política econômica não é sincera. É verdade que o ministro Antonio Palocci transmite sinceridade quando sustenta sua política e garante que esse é o caminho para o crescimento, que demora e é assim mesmo. Mas os outros parecem estar o tempo todo procurando uma desculpa por terem entrado nessa. É a crise, a herança maldita, a vulnerabilidade externa – sempre se procura uma justificativa para a adoção de uma política que seria ruim e perversa, mas a única possibilidade no momento. Ora, se é assim, pode-se concluir que a política é provisória, um quebra-galho, a ser atirado no lixo assim que as circunstâncias mudem. O próprio presidente, em diversas ocasiões, parece não se conformar com o caminho em que se meteu. “Que situação a minha!” – teria dito ele numa dessas infindáveis reuniões, verdadeiras assembléias, de tão numerosas, para se discutir o salário mínimo. Está certo que, toda vez que foi chamado a decidir, o presidente decidiu com base no superávit primário, no controle da inflação e no respeito os contratos. É, portanto, uma escolha sincera, pode-se dizer. Mas é aquela história do recém convertido: precisa reconfirmar sua fé a todo instante. Por exemplo: quando um Armínio Fraga ou um Sérgio Werlang discutem se a meta de inflação pode ser alterada, e se os juros podem cair mais depressa, é uma coisa técnica e sincera. Idem quando um Raul Velloso especula sobre o tamanho do superávit primário. Já quando um Aloisio Mercadante sai propondo superávit anticíclico, expurgado disso e daquilo, meta de inflação mais folgada, revisão nos termos com o FMI, o pessoal desconfia que é para melar alguma coisa. Do mesmo modo, quando vários ministros ficam horas dizendo ao presidente que ele precisa elevar o mínimo a qualquer modo, o pessoal desconfia que o controle das contas públicas vai dançar. E tanto a desconfiança faz sentido que o ministro Palocci vira e mexe vai à imprensa para dizer que o superávit é de 4,5% do PIB, que a conta é a de sempre, que a meta é meta, que não dá para o salário mínimo, e ponto final.Mais ainda: se não fosse a desconfiança, o governo nem precisaria fazer o superávit primário recorde de março, vários bilhões acima da meta. Resumo da ópera: enquanto os amigos do presidente continuarem no papel de envergonhados e arrependidos, a desconfiança em relação à política econômica vai continuar. Com os custos: risco Brasil mais alto, por exemplo. Ou seja, empresas e governo pagando juros mais caros lá fora e, pois, aqui dentro. O fim da desconfiança faria mais que a redução de juros do BC. E até permitiria, aí sim, um desconto no superávit. Economia De mercado? E por falar nisso, o presidente do PT, José Genoino, poderia aproveitar sua visita à China para aprender como o pessoal lá aderiu de corpo e alma (e bolso) à economia capitalista, mantendo a aura e a linguagem o Partido Comunista. No último Congresso, mudaram a Constituição para consagrar o direito à propriedade privada. E nem se lembraram de falar da função social da propriedade, como fizeram os nossos constituintes de 88. Lá, portanto, não tem argumento para invasão de terras ou de casas. Os chineses também introduziram as privatizações e montaram um sistema tributário enxuto, para favorecer o capital e seus investimentos. Ou seja, é um sistema pró-negócios privados, nacionais e estrangeiros, sem oposição, sem dissidências. Abandonaram o comunismo? O que é isso, companheiro? – respondem os companheiros chineses, “estamos construindo a economia socialista de mercado”. Não é brincadeira. A definição está na Constituição. Eis o que falta ao PT e seu governo. Uma adesão de cabeça ao capitalismo e um boa marca para o regime. Economia democrático-popular de mercado? Publicado em O Estado de S.Paulo, 26/04/2004
DA CHINA PARA O PT
- Post published:9 de abril de 2007
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