Da Argentina para Santa Catarina

. Só a geografia não basta A cena se passou no caixa de um pequeno supermercado no balneário dos Açores, praia Pântano do Sul, em Florianópolis. Uma argentina recém chegada oferece uma nota novinha de 20 dólares para pagar sabonetes, pasta de dente, bolachas, leite, pão, café, açúcar, essas coisas para abastecer a casa alugada para o verão. A moça do caixa examina a nota num gesto rotineiro e informa que o câmbio é de R$ 2,40 (isso foi no começo da semana passada, quando o comercial estava a 2,30). A senhora argentina concorda e recebe o troco em reais. A cena é comum há muitas temporadas, mas desta vez chama a atenção. Primeiro, como é que famílias argentinas ainda chegavam para férias com aquela crise em seu país? Segundo, como aquela senhora, com compra miúda, se desfazia de preciosas notas de dólares, mercadoria que se tornara escassa em seu país? Conversa daqui, conversa dali, a senhora argentina conta que paga em notas de dólares simplesmente porque não tem outra moeda de troca. Sua família está inteiramente dolarizada, guarda papel-moeda e isso responde também à primeira pergunta. Pode vir de férias ao Brasil porque não tem pesos. Eis aí uma família ganhadora na presente crise argentina, desde que não tenha depósitos bancários em dólares, cuja liberação vai levar anos. Mas a julgar pelo que acontece na temporada de Santa Catarina, trata-se de exceção. Os argentinos simplesmente não apareceram, contam Andrea e Zaidir João Junior, um casal empreendedor, dono do supermercado recém ampliado, chamado de mercadinho em homenagem à sua origem, e da imobiliária que fica ao lado. A imobiliária também é um exemplo de Brasil empreendedor. Uma única sala, pequena, mas que a Internet (www.acores.com.br) liga ao mundo e especialmente aos vizinhos do Mercosul, sobretudo Argentina. Uma funcionária recebe os emails em espanhol, responde em português, todos se entendem na marcha da integração. É ali também que se sabe das novidades. Vieram os argentinos que têm dólares. Vieram também aqueles fregueses de todos os anos que já tinham pagado o aluguel da casa. Mas alguns cancelaram mesmo já tendo adiantado a metade. “Aqui do nosso lado não está tão ruim, mas temos menos turistas do que no ano passado”, conta Zaidir, entre resignado e esperançoso. A temporada do ano passado foi boa, este é ruim, a próxima quem sabe melhora. Nas badaladas praias ao Norte, ponto preferencial dos argentinos, a situação é pior. Os aluguéis mudaram de moeda e mesmo assim tiveram queda nominal. Gente que alugava sua casa por 120 dólares/dia a clientes argentinos fixos, não tem conseguido mais de 100 reais, isso cobrado de brasileiros, sobretudo paulistas, que, apostando na crise, chegaram sem reserva. Esta é a temporada da caça. Na verdade, o pessoal de Santa Catarina esperou pelos argentinos até o último momento, até porque o governo e as entidades do turismo não foram capazes de perceber e alertar para o óbvio. A crise estava na cara há muitos meses, mas só agora governo e setor privado preparam uma “campanha de emergência” em jornais de São Paulo, Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte e algumas outras cidades, para tentar substituir os argentinos. A campanha começa em fevereiro, perto do carnaval, e ainda chamam de “emergência”. Ou seja, foram incompetentes ao não prever a crise mais prevista da história e são de novo incompetentes ao gastar dinheiro com propaganda no final da temporada. E isso exibe o Brasil atrasado. Ao lado de gente empreendedora, que lá nos Açores, extremo sul da ilha de Santa Catarina, sai do zero para um pequeno supermercado e uma imobiliária plugada, que ficam abertos todos os dias do ano, os donos no batente, o filho mais velho fazendo as pequenas entregas para aprender que a vida não é apenas a linda praia ali ao lado, governo e entidades do setor privado dormem no ponto. No caso, dormiram nos dólares dos argentinos. As consequências são graves. Os preços foram dolarizados. Floripa ficou cara, o que reduziu a clientela brasileira com seus reais desvalorizados. Os serviços, no geral, quase não evoluíram. E para quê? O pessoal se fiou na geografia: a beleza das praias de Santa Catarina, que se percebe mesmo em dia de chuva, e a proximidade dos argentinos. Para estes, Floripa sempre foi a escolha óbvia de verão. Quando essa clientela está dolarizada, é só colocar os preços e esperar. Não é a primeira vez que acontece. As histórias monetárias de Brasil e Argentina não coincidem. Quase sempre uma moeda está desvalorizada, a outra valorizada, de modo que um vizinho fica mais rico em relação ao outro quando cruza a fronteira. Vinte anos atrás, Floripa viveu o inesquecível verão “dáme dos”. Feita a conversão, qualquer produto ficava tão barato para os argentinos que eles levavam logo dois. Ficaram conhecidos como os “dáme dos”, como soava para o pessoal local. Depois veio a hiperinflação na Argentina e o negócio virou. Foi assim alternando até que a Argentina entrou na lei de conversibilidade (1994) e Santa Catarina colheu os dólares deles por muitos anos seguidos. E de novo não se preparou para o fim da festa dos vizinhos. De certo modo, foi a mesma coisa que aconteceu com a Argentina. Assim como lá não se aproveitaram os bons anos da conversibilidade – quando o país crescia a taxas asiáticas – para preparar a virada, também o turismo de Santa Catarina não usou os dólares argentinos para criar uma estrutura permanente de serviços. No dia-a-dia, o negócio é obviamente surfar a onda boa. Se há quem pague 120 dólares/dia por uma casa, por que o dono iria alugá-la por 100 reais? Mas a função do governo e das entidades empresariais é antecipar o futuro e planejar. Poderiam ter criado mecanismos que aproveitassem os lucros com os argentinos para financiar turismo mais barato para brasileiros – e assim ampliar a clientela permanente. Andaram tentando alguma coisa, mas está claro que falhou. A prova é a tal campanha de emergência que, às vésperas do carnaval, tenta salvar uma temporada cujo forte vai justamente até o carnaval. Publicado em O Estado de S.Paulo, 14/01/2002

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