ARGENTINA – DE RICA A POBRE

. Artigos Los Boludos Tem acontecido nas últimas semanas. Você vê na telinha que a bolsa está caindo, juros e dólar estão subindo, e liga para suas fontes de confiança no mercado para saber o que passa. E ouve: “Los boludos, de novo”, isso dito em um tom de voz contraditório, estranha mistura de preocupação e satisfação. Claro, refere-se à Argentina, fonte da recente instabilidade. Mas há muito mais por trás dessa frase. É uma espécie de vingança, numa história que mistura futebol e economia. Quem é melhor? – eis a questão. Maradona é melhor que Pelé, acredita a maioria dos argentinos. Também não há dúvida, para eles, que a atual seleção argentina é infinitamente superior à brasileira, assim como, e aqui a história começa a se misturar, a economia argentina exibe retrospecto superior. Pelé, sabem todos os não-argentinos, é muito melhor que Maradona, mas lá em Buenos Aires eles sempre terão como debater. Os dois já não jogam, nem atuaram na mesma época. Quanto à seleção argentina, é verdade que vem dando um banho nos últimos tempos. O que levou às alturas a já exagerada auto-estima de nossos vizinhos. Na véspera do fatídico jogo Brasil 3, Argentina 1, a imprensa portenha especulava: poderá o atual time argentino jogar ainda melhor? Dificilmente, era a conclusão. Depois da derrota, a seleção argentina voltou a castigar bolivianos e paraguaios, mas qual a graça? E aí veio a crise econômica, um outro 3 a 1. Sim, há placar em economia. Por exemplo: na semana passada, o governo argentino pagou juros de 17% ao ano nos títulos em pesos. No Brasil, o governo também andou pagando os mesmos 17%, mas os números aí enganam. Na Argentina, há deflação, de modo os juros reais chegam perto de altíssimos 20% ao ano. No Brasil, descontada a inflação anualizada de uns 6%, resulta uma taxa real de juros de 10% – a metade da portenha. No mercado internacional, os títulos da dívida externa argentina estavam pagando na semana passada juros de 16%, em dólar, claro. Os papéis brasileiros, 13%. Placar indiscutível. A Argentina perde feio. Se os investidores locais e internacionais estão cobrando mais para financiar os papéis argentinos, é porque essa torcida aposta que o time portenho não vai longe. Há poucos meses, a situação era exatamente o contrário. Ainda em julho último, o governo argentino colocava títulos no mercado interno, em pesos, a civilizados juros de 7% ao ano. Em dólares, a menos de 12%. Foi assim durante os últimos anos, a Argentina goleando o Brasil, pagando juros bem menores e sempre citada como exemplo pelos investidores internacionais. As agências de classificação de risco, espécie de ranking mundial, colocavam a Argentina vários postos acima do Brasil. Mais do que isso. No final de 1998, quando o FMI e o governo americano montaram o pacote de ajuda financeira ao Brasil, todo mundo dizia que isso não adiantaria nada se o governo brasileiro não fizesse a sua lição de casa, isto é, um forte programa de ajuste das contas públicas. O Brasil, dizia-se então, precisava aprender com a Argentina. Na reunião do FMI nessa época, outubro de 98, em Washington, entre ironias, alguns analistas sugeriam uma saída para o Brasil: abolir seu Banco Central e seu Ministério da Fazenda e filiar-se ao BC e ao Ministério da Economia da Argentina. Os pacotes brasileiros de ajuste interno não tinham credibilidade, dizia-se então. E era verdade. As prometidas medidas de austeridade eram deixadas de lado tão logo a situação se acalmava. Pois então, na última sexta-feira, o governo do presidente Fernando De La Rúa se preparava para lançar um pesado pacote – o quarto em menos de um ano. Preparava-se também para receber ajuda financeira do FMI – com todos os analistas dizendo que não adiantaria nada se o governo De La Rúa não assumisse uma atitude firme. Exatamente o que se dizia de FHC no final de 1998. Eis o quadro hoje: a economia brasileira tem sido promovida pelas agências e pelos investidores, a argentina, rebaixada. A instabilidade lá afeta o mercado brasileiro, especialmente o dólar, mas não altera o curso da economia real. O Brasil continua em crescimento, recebe novos investimentos e novas fábricas, inclusive algumas que deixam a Argentina. É por isso que o pessoal do mercado financeiro aqui – embora chateado com a instabilidade – não consegue esconder um tom de satisfação com o infortúnio portenho. Não é um bom sentimento, nem inteligente. Estamos todos no Mercosul, seria bom que a Argentina fosse muito bem. Mas se compreende. Depois de anos sendo culpados pelas desgraças sul-americanas e vítimas do sentimento de superioridade argentina, os brasileiros do mercado estão indo à forra. “Esses boludos, eles não têm jeito”. Do lado de lá, a sensação é ruim e não se limita ao mercado financeiro. Dias atrás, o correspondente do Estado em Buenos Aires, Ariel Palacios, escreveu uma importante reportagem sobre o empobrecimento da classe média argentina. Tocou numa questão crucial. Acontece que a Argentina era um país rico na virada e nos anos iniciais deste século. Renda per capita de Primeiro Mundo, população educada, metrô, café nas largas calçadas, Teatro Colon exibindo as melhores companhias do mundo. Foi dessa altura que o país veio descendo nos últimos 50 anos. Muita gente acredita que a deterioração se deve ao neoliberalismo de Carlos Menem (1990/99) mas, como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa, é tarefa de gerações. Também não é fácil consumir a riqueza de uma nação. Leva anos de paciente gastança. No começo, não se percebe, assim como ocorre com uma família tradicional que vende a primeira propriedade. Quando finalmente cai a ficha, percebe-se que já se foram os dedos junto com os anéis. E assim voltamos à atual crise. Autoridades argentinas reclamaram em Wall Street que estavam sendo muito mal tratadas pelos investidores com essas altíssimas taxas de juros. Taxas brasileiras. Mas é a triste realidade: os investidores estão cobrando juros de país emergente, que é a Argentina de hoje. A gente sabe como é. Publicado em O Estado de S.Paulo 13/11/00

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