AMÉRICA LATINA, ATRASADA DE NOVO

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O atraso é nosso                
Carlos Alberto Sardenberg       
    
      Tem razão o presidente da França, Jacques Chirac. Perguntado sobre a expansão da esquerda populista, lá na cúpula de Viena, comentou: ?Esse é um problema que parece estar acontecendo só na América Latina?. Portanto, arrematou, problema deles.     
É isso, é o nosso enorme problema. Desde 2003, a economia global engatou uma marcha batida de crescimento. Por quatro anos seguidos, o produto mundial cresce a taxas reais superiores a 4% anuais, uma sequência real que não se via desde a década de 70. Essa forte expansão tem duas fontes principais, os Estados Unidos, o shopping do mundo, e a China, a fábrica do mundo. Mas excetuando áreas da África, atormentadas pelos conflitos raciais, aids e outras doenças, sem esquecer a ladroagem de seus dirigentes políticos, todas as regiões estão em franca expansão, algumas mais rápido, outras menos.     
E quem está no fim da fila no mundo emergente?     
Acertou, a América Latina (veja o quadro).     
Pois então, diriam Hugo Chávez, Morales, Hummala, Obrador e o Lula de antes, isso prova que o neoliberalismo, a globalização, as reformas e as privatizações dos anos 80 e 90, impostas pelo centro capitalista, estão atrasando a América Latina. Como sempre aconteceu, acrescentariam, o imperialismo estrangeiro nos empurra para a pobreza. Daí vem a receita: nacionalizar de novo, desfazer as reformas, brigar com os Estados Unidos, bloquear a globalização comercial.     
Assim é que Hugo Chávez, em Viena para uma cúpula cujo objetivo era  avançar nas negociações para abertura comercial entre Europa e América Latina, torna-se o herói da anti-cúpula, cujo objetivo é exatamente o contrário, o de melar essa e outras negociações comerciais. E ouve emocionado a massa cantando a Internacional Socialista em sua homenagem. Os fundadores do socialismo devem estar revirando nos túmulos. Se o coronel Chávez é o melhor que a esquerda pode arranjar no século 21, a coisa está mal parada para essa turma.     
De todo modo, para que a tese do neo-nacionalismo fosse correta, seria preciso que só estivessem em franco crescimento os países emergentes que tivessem se rebelado contra globalização e as reformas. Ora, é o contrário. Os países que mais crescem, a começar pela China e Índia, são aqueles que se abrem ao capital estrangeiro, ao mercado e ao comércio internacional. Quanto mais reformas neoliberais, mais crescimento.     
Quer um exemplo na América Latina? A Bolívia. Qual o setor mais dinâmico da economia boliviana nos últimos anos? O setor de gás e petróleo, gerador de negócios, receitas de exportação e impostos, além de empregos, em expansão desde a privatização e a entrada dos estrangeiros, a começar pela Petrobrás.     
Quer outro setor dinâmico na Bolívia? A soja, para lá levada pelo agronegócio brasileiro, moderno, capitalizado, internacionalizado ? e também um dos alvos da esquerda populista, inclusive aqui no Brasil.     
E agora um exemplo do outro lado. O Chile, o latino-americano que mais avançou nas reformas, vai muito bem obrigado. Pode-se dizer que tem sido beneficiado pelo alto preço do cobre, o que é verdade.     
Mas quase todas as comodities estão em alta, todos os emergentes, por isso, estão aumentando suas exportações. (Aqui, aliás, convém deixar um adendo: pessoal do governo Lula diz que o crescimento do comércio externo brasileiro deve-se a medidas internas e à diplomacia terceito-mundista do presidente. De novo, para que isso fosse verdade, seria preciso que todos os países emergentes estivessem praticando a mesma política, o que está longe de acontecer. As exportações dos emergentes crescem, primeiro, porque o mundo todo está em expansão e comprando. A partir daí, alguns aproveitam mais outros menos. O Brasil dobrou suas exportações em quatro anos. Outros triplicaram e mesmo quadruplicaram, por exemplo, vendendo mais para os EUA).     
A esquerda sustenta que Argentina e Venezuela cresceram mais nos últimos quatro anos, aqui na América do Sul. É verdade que a média da Argentina é melhor nesse período, mas isso se segue a quatro anos anteriores de recessão e pesada perda de produto. Está apenas recuperando.  Diz-se: mas a crise da Argentina foi do regime neoliberal. Mas o Chile,  embora tendo um ano muito ruim em 1999 (queda de 0,9%), que foi o auge da crise brasileira, passou com facilidades pelo tumultuado período anterior que havia abatido Argentina e Brasil. Como é que o mais neoliberal passou melhor pela tormenta? Resumo da ópera, curto e grosso: não existe nenhum país em crescimento sustentado e firme que pratique a política econômica preconizada pelos Chávez e Morales. Nenhum. Todos os que crescem bem, fazem justamente o contrário. Ainda bem que Lula percebeu isso antes de iniciar seu governo. Pena que não tenha tido a mesma clarividência em política externa. Chirac continua tendo razão: é coisa da América Latina, com as raras e salvadoras exceções. Publicado em O Estado de S.Paulo, 15/maio/2006

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