A QUESTÃO SOCIAL NO GOVERNO LULA

. A questão social A simplificação do caso MST dá em duas interpretações excludentes. Ou o Movimento é apenas a expressão de uma crise social, sendo seus excessos consequência da dramática situação dos excluídos (o pessoal faz saques porque está com fome). Ou o MST é apenas um movimento subversivo cujo objetivo final é derrubar o capitalismo, sendo a propriedade privada rural o alvo imediato. Aceita a primeira interpretação, resulta uma política de tentar atender as reivindicações, acompanhada de muita compreensão e tolerância mesmo com eventuais violações da lei (os tais excessos justificados). Pela segunda interpretação, é mais simples: trata-se de chamar a polícia e levar o caso para os tribunais. Como sempre, esse tipo de simplificação exacerba o debate, mas não explica. É verdade, por um lado, que há gente sem terra, querendo e precisando dela para sobreviver. Mas é verdade também que o MST tem um programa de revolução campesino-socialista. Portanto, as duas interpretações parecem ao mesmo tempo certas e erradas. Por isso não servem para nada. Quer dizer, servem para a luta política e, talvez, para justificar idas e vindas do mercado, mas não para entender o caso, muito menos para levar a uma eficiente busca de solução. Resulta daí uma situação particularmente complexa para o governo Lula. E, ao contrário do que parece, trata-se se um caso muito mais difícil do que foi no governo FHC. O governo Lula veio para resolver não apenas o caso do MST, mas a ampla questão social. Essa é a expectativa não apenas de seus 54 milhões de eleitores, mas também de lideranças políticas e econômicas pelo mundo afora. Certo ou errado, há um entendimento bem disseminado segundo o qual o surto de desenvolvimento capitalismo mundial globalizado dos anos 90 foi injusto num duplo sentido: com os países pobres e, dentro dos países, com as pessoas pobres. Daí a onda antiglobalização (ou anticapitalista, antineoliberal, sendo tudo o mesmo protesto por mudanças) que varreu os mais diversos países e produziu efeitos políticos variados, entre os quais a eleição de Lula. A decepção com as injustiças distributivas do capitalismo global não ressuscitou o socialismo em nenhuma de suas variações. A questão que ficou foi a seguinte: como combinar a dinâmica do crescimento capitalista com justiça social? Ora, com Lula, tal foi a resposta que animou muita gente aqui e lá fora, a partir do momento em que o presidente brasileiro adotou uma política econômica que respeita as bases da economia capitalista de mercado. Mas isso sem ser um neoliberal – ao contrário, sendo um líder popular (não populista), liderança reconhecida como sua pelos mais pobres. Ou seja, uma pessoa preparada para resolver a questão social sem detonar a economia de mercado. É verdade que entre os eleitores de Lula e entre seus admiradores mundo afora, há muitos que esperavam exatamente o contrário, que ele detonasse a economia do mercado, o FMI, o imperialismo, etc. Mas são minoria, aquela minoria que, nas eleições anteriores, lhe dava os votos para competir e não para ganhar. Na maioria que ganha, qual era a expectativa? Que Lula saberia lidar com o MST e demais movimentos sociais e estaria atento para que toda as políticas de governo estivessem contemplassem os mais pobres. Como faria isso? Bem, era exatamente isso que se estava esperando para ver. Na campanha, Lula deu várias indicações. Disse, por exemplo, que ia acabar com o MST, pois distribuiria tanta terra que não sobraria um sem-terra sequer para militar no movimento. Lançou enormes esperanças em torno do Fome Zero, seu programa essencial, a prioridade das prioridades, como ele mesmo dizia. O presidente falou também de diversos outros programas, mas fiquemos naqueles dois pontos principais, MST e Fome Zero. O que se vê hoje? No primeiro caso, o governo já descobriu que não tem dinheiro para assentar as 60 mil famílias prometidas para este ano – e que o MST acha um número ridiculamente pequeno. Também já percebeu que não tem o dinheiro suficiente para melhorar em curto prazo a qualidade das centenas de milhares de assentamentos deixados pelo governo FHC. Portanto, a promessa de extinguir o MST pela contemplação de todos os seus militantes não é exequível. Mais do que isso: as ações do MST mostraram que mesmo se todos os seus atuais militantes recebessem sua terra, em boas condições de trabalho, ainda assim o movimento estaria ativo. Como têm dito seus líderes, uma vez distribuída a terra para todos os excluídos, aí seria necessário fazer a reforma agrária de verdade, de modo que, segundo João Pedro Stédile, os 26 milhões de camponeses acabassem com os 26 mil fazendeiros. Resumindo, era o caso de eliminar a propriedade privada rural tal como existe hoje, de modo a substituir o agronegócio baseado em alta tecnologia e pouca mão-de-obra pela pequena agricultura familiar. E depois fazer algo parecido na sociedade toda. E se é assim, o discurso e a prática do governo Lula estão ameaçados. O discurso sustenta que o MST – como exemplo dos demais movimentos sociais – é apenas expressão da carência e da exclusão. Ora, está claro que não é apenas isso. Há um movimento ideológico com objetivos próprios. Por isso, o MST não dá trégua a Lula. Daria se o seu objetivo básico fosse obter terra para seus associados e se confiasse que Lula ia atendê-los tão prontamente quanto possível. Aí aguardaria a ação de seu governo, não precisando de invasões para chamar a atenção do governo e da sociedade. Para o MST, entretanto, parece que o governo Lula é uma espécie de licença para invadir, a garantia de que não haverá repressão. E se é assim, qual o avanço do governo Lula nessa questão social em relação ao governo anterior? A restrição orçamentária é a mesma, de modo que o plano do governo é o mesmo (promover assentamentos paulatinamente) e a ação política do MST é a mesma. A única diferença é que este governo reluta em reprimir – e isso será perigoso se o movimento acelerar suas ações. Estará visto que o governo não encontrou uma nova maneira de lidar com o problema. E se o Fome Zero não decola como um novo modelo de programa social, qual a diferença? Considere-se que o governo FHC, ao contrário do que diz sua imagem, montou diversos programas, gastou dinheiro e obteve avanços em todos os indicadores sociais, melhorando a posição do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano, e se pode perguntar: qual a marca da nova administração? Eis o ponto: o que está em jogo é mais do que saber lidar com o MST ou dar um jeito no Fome Zero. Na verdade, se o governo Lula perder o eixo na questão social, estará perdendo sua alma. Publicado em O Estado de S.Paulo, 04/08/2003

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