A POLÊMICA DOS PLANOS DE SAÚDE

. A vida tem preço. E custa caro. Assegura a Constituição brasileira que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Acrescenta que o Estado cumprirá esse seu dever garantindo “acesso universal e igualitário” às ações e serviços de saúde, prestados diretamente pelo poder público ou por terceiros, sob controle do governo. Ou seja, qualquer pessoa, precisando de assistência médica, será atendida gratuitamente em instituição pública (ou em alguma outra designada pelo Estado) na qual receberá cuidados igualitários. Ricos e pobres terão exatamente o mesmo tratamento. De maneira complementar, diz a Constituição, a assistência à saúde poderá ser prestada pela iniciativa privada, mas sempre conforme regras e fiscalização do Estado. Portanto, são dois sistemas: o Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, e a rede privada, acessória e controlada. Como em quase toda a Constituição, prevaleceu a concepção estatizante. Para os constituintes, o livre mercado seria incapaz de promover saúde de modo amplo e justo. O Estado teria de cuidar disso. Não se chegou ao limite de proibir a iniciativa privada, o que significaria, na ocasião, estatizar todos os hospitais e clínicas privadas. Mas, claramente, a idéia era que o regime privado seria acessório, coisa pouca, de ricos preconceituosos, pois o Estado daria boa assistência a todos. Daria. Hoje, 2.277 companhias seguradoras e operadoras de planos de saúde, todas privadas, atendem nada menos que 38 milhões de pessoas, que pagam por sua assistência diretamente, em contratos individuais, ou indiretamente, no caso de planos vinculados aos empregadores. Diversos órgãos de governo, inclusive federais, contratam essas seguradoras ou operadoras privadas para prestar assistência a seus funcionários. Um sistema que atende 38 milhões de pessoas não pode ser considerado complementar, muito menos acessório. Ao contrário, é a prova cabal de que o SUS não é nem universal nem igualitário. E nem de alta qualidade. Há, por certo, instituições públicas de excelência, mas são poucas e mesmo essas estão de algum modo ligadas ao setor privado, pois atendem particulares diretamente ou por meio dos convênios com as seguradoras e operadoras de planos. O problema é de dinheiro. Ao contrário do que se diz, a vida tem preço e custa caro. Assistência médica de qualidade é cada vez mais cara, aqui e em qualquer lugar do mundo, em consequência dos enormes gastos em pesquisa e avanços tecnológicos. Tomografia computadorizada é muito mais cara que o velho Raio X. Como a Constituição, sempre estatizante, atribuiu ao Estado uma enorme quantidade de serviços e, aos cidadãos, uma ampla gama de direitos e vantagens gratuitas, só podia dar no que deu, um enorme aumento da carga tributária para financiar isso tudo. Ainda assim não é suficiente. Caímos no pior dos mundos: pagamos impostos elevadíssimos, para serviços precários e limitados. Mas o fracasso do Estado na saúde é duplo. Primeiro, porque não garante atendimento universal e igualitário. E segundo, porque não é eficiente no controle do setor privado. A demonstração disso se viu na semana passada: mais uma enorme confusão em torno das mensalidades e das atribuições das seguradoras e operadoras de planos. Outra prova está na difícil situação financeira imposta às companhias pelas leis e regras definidas pelo governo. Um estudo da consultoria Capitolio, divulgado na última sexta pelo jornal Valor Econômico e baseado nos balanços de 927 empresas, mostrou que elas estão trabalhando em níveis arriscadíssimos. Têm R$ 1,20 em caixa para cada R$ 1,00 de obrigações exigíveis no curto prazo, índice de 1,2. Compare-se: o índice médio do mercado segurador é de 2,60. O estudo verificou ainda que o faturamento com a venda de fundos caiu no ano passado, em termos reais. Muitas companhias não estão mais vendendo planos novos, por entenderem que seriam fonte de mais prejuízo. Aliás, 34% das empresas perderam dinheiro em 2003. O índice de sinistralidade é o mais alto do setor. Para cada 100 reais que recebem de pagamento de prêmios, seguradoras e operadoras gastam cerca de 80 reais. Sete operadoras tiveram 100% de sinistralidade. E algumas companhias informam que, neste ano, estão gastando 140 reais por cada 100 reais que recebem de prêmios. São aquelas mais antigas, com planos vendidos há muitos anos e cujas mensalidades hoje são muito mais baixas, em consequência dos congelamentos e controles nos reajustes. Ou seja, é precária a saúde econômico-financeira das empresas que atendem 38 milhões de pessoas. Digamos que existam empresas inescrupulosas e/ou ineficientes. Mas a enorme maioria? É o setor todo que vai mal das pernas. Uma análise econômica fria, sensata, sugere que o problema está na legislação e nos regulamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que, de um lado, impuseram amplos direitos para os segurados, inclusive para contratos em andamento, e, de outro, limitaram preços e reajustes de mensalidades e prêmios. De outro lado, o governo, as instituições de defesa do consumidor e boa parte dos juízes estão todos convencidos de que as seguradoras e operadoras de planos constituem um bando de vampiros só preocupados com lucros, danem-se os pacientes. Tem mais: hospitais privados reclamam que as seguradoras e operadoras de planos querem reduzir os pagamentos e limitar os procedimentos médicos. As empresas dizem que precisam fazer isso porque não têm caixa para mais. Os pacientes, com apoio de seus médicos, exigem todos os tipos de exames e procedimentos. Os médicos dos planos e seguradoras ganham muito mal e reclamam reajustes legítimos. Resumo da ópera: ao longo de anos, o governo criou uma confusão danada em um setor crucial. Isso ao longo de anos. Mas o governo atual complica o quadro com sua desconfiança enorme em relação a um setor privado essencial. O SUS, na média, tem eficiência e é, na verdade, a única possibilidade de atendimento para grande parte da população brasileira. Mas está claro que não há dinheiro para oferecer acesso universal e igualitário, a menos que se aumentem impostos, o que ninguém quer. Muito menos terá condições para atender os 38 milhões hoje atendidos por um setor privado colocado em difícil situação financeira. É preciso rever o sistema a partir de um ponto óbvio: não há saúde grátis. Publicado em O Estado de S.Paulo, 19/07/2004

Deixe um comentário