VENDEMOS COMIDA. E DAÍ?

—Ser um grande produtor e exportador de alimentos é uma vantagem estratégica do Brasil. Não podemos atrapalhar isso —-

Cruzamento de melancia com abóbora, dá o quê? Dá melancia, mas de um tipo mais resistente. Mas se você estiver interessado em plantar essas melancias, não se precisa preocupar com isso. A variedade já está disponível no mercado, mais exatamente em Nehalim, Israel, no centro de produção da companhia Hishtil.
Agricultura contemporânea é isso. Pura pesquisa e tecnologia. Deixa-se quase nada por conta da natureza. Aquela companhia israelense, por exemplo, não produz sementes, nem grandes plantações. Compra as sementes e as cultiva em áreas que são quase um laboratório, com tudo controlado (a terra, quantidade de água, nutrientes, tempo de exposição ao sol e, claro, os enxertos). Ao cabo de algumas semanas ? prazos fixos, conforme a variedade ? a produção está ?pronta?.
São mudas em, digamos, montinhos de terra, uma a uma. O cliente leva aquilo e planta em suas terras.
Nada fica ao acaso. É produção padronizada, planejada e controlada pelos computadores, sob encomenda e com data certa de entrega. Como se fosse uma produção industrial.
E eis porque estamos falando disso. Muita gente no Brasil está incomodada com a grande expansão do agronegócio nacional, também um prodígio da pesquisa e da inovação tecnológica. A exportação de alimentos, em extraordinária expansão, mudou a estrutura das contas externas brasileiras, ao trazer bilhões de dólares que foram parar, em grande parte, nas reservas do Banco Central. De eterno devedor, o setor público brasileiro passou a credor em dólares ? circunstância que permitiu passar pela crise financeira global.
O crescimento do agronegócio foi de tal ordem que reduziu o peso relativo da indústria tradicional no comércio externo brasileiro. Mesmo com o real valorizado, mesmo com o elevado custo Brasil, os produtos agrícolas brasileiros foram competitivos e ganharam mercados globais.
Mas, é isso que a gente vai ser, vendedor de alimentos? ? tal é o incômodo. Essa bronca vem de ideologia do passado. A velha teoria dizia que os países subdesenvolvidos só ficariam ricos com a industrialização, pois produtos agrícolas e minérios, as comodities, ficariam cada vez mais baratos, por serem, digamos, banais, fácil de fazer e de extrair. Em compensação, os preços de manufaturas, com toda sua tecnologia e valor agregado, ficariam cada vez mais caros.
Aconteceu o contrário. As manufaturas ? as básicas, geladeira, fogão, televisores, carros ? ficaram cada vez mais baratas, em grande parte por causa da inundação de produtos chineses. Além disso, ficou fácil fazer: qualquer um monta um computador. O valor se deslocou para a idéia, a criação, o design, o marketing.
Olhem na parte de trás de um iPhone. Está escrito: Desenhado pela Apple na Califórnia ? montado na China. Desagregue-se o preço do celular e se verificará que a maior parte do dinheiro fica na Califórnia.
No outro lado de nossa história, os alimentos ficaram cada vez mais caros, por causa da demanda crescente dos emergentes, em especial da China e Índia. Reparem: nos países já ricos, ganhos de renda adicionais não levam a um aumento no consumo de alimentos. Simples: as pessoas já comem o suficiente, até demais.
Considerem a China: a renda per capita vai de mil dólares para oito mil ? e aumenta o consumo de carne, leite, chocolate, biscoito, arroz.
Preços de alimentos em alta estimularam o plantio e, especialmente, os investimentos em tecnologia para que se pudesse retirar mais produto das mesmas terras ou de terras até então improdutivas. Como foi o caso de cerrado brasileiro, onde não crescia nada e de onde hoje sai a soja que domina mercados mundiais. Pode-se dizer que a soja de lá e o próprio terreno foram ?inventados? pela Embrapa.
Todos os cenários indicam que o mundo emergente continuará em expansão, de modo que a demanda por alimentos será crescente. Considerando os limites de espaço e as restrições ambientais, só haverá uma saída para alimentar o mundo: tecnologias, inovação, ciência e pesquisa.
Ora, como Israel, o Brasil já dispõe de tecnologia e tem conhecimento e capacidade para continuar inovando, se o pessoal do ramo não for bloqueado por ideologias velhas. E, ao contrário de Israel, o Brasil tem abundância de recursos naturais. Ou seja, podemos inventar a melancia (ou a soja) e plantar milhões, para o mundo.
Resumo da ópera: o país precisa entender que produzir alimentos será simplesmente lucrativo e estratégico. Não podemos atrapalhar o agronegócio.
(Ok, fazemos o hedge: claro que todas as ressalvas ambientais precisam ser respeitadas, mas é preciso buscar soluções que combinem a preservação e a restauração com uma sólida produção de alimentos).
Isso não quer dizer que dispensamos a indústria, a manufatura. Há um argumento essencial: o país, em algumas décadas, terá 150 milhões de trabalhadores. Será preciso arranjar emprego para toda essa gente, o que será impossível sem uma indústria desenvolvida.
Mas também aqui precisamos entender qual a indústria do século 21 (uma delas será certamente aquela ligada a alimentos, no que o Brasil pode ter boaposição). Se a escolha for, por exemplo, por montar iPhones, estaremos de novo no lado fraco, sem valor. É por isso que a China coloca muito dinheiro em compra de terras e pesquisa de alimentos, energia renovável (no que o Brasil também pode ser campeão) e novos produtos industriais.

Publicado em O Globo, 18 de novembro de 2010

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