UM EQUÍVOCO DE LULA SUSTENTA A DIPLOMACIA

. Como pode Lula equivocar-se tanto? A imprensa quase não noticiou, mas o presidente Lula enunciou na semana passada um enorme equívoco, e justamente o equívoco que dá base à sua diplomacia comercial. Disse Lula no dia 20, na abertura do Salão do Automóvel em São Paulo: “Nós respeitamos profundamente a nossa relação com os Estados Unidos, respeitamos profundamente a nossa relação com a União Européia, respeitamos de forma extraordinária a nossa relação com o Japão, a nossa relação com a França, mas o dado concreto e objetivo é que o mundo é muito maior que esses mercados”. É exatamente o contrário. Tirando EUA, os países mais desenvolvidos da Europa e o Japão, sobra muito pouco mercado. Conforme dados do Banco Mundial, as nações ricas respondem por 80% do que se produz (mercadorias e serviços) em todo o mundo. Como pode o presidente equivocar-se tanto? Ou teria sido um simples problema de palavras mal colocadas? Mas não, definitivamente não foi erro de expressão. No mesmo discurso, o presidente voltou a dizer que sua diplomacia visa mudar a geografia comercial do mundo e que o Brasil deseja aprofundar relações com os países do Sul, os não-ricos. A começar pelos sul-americanos, que estão aqui tão pertinho. E no mesmo dia, os jornais anunciavam o fracasso das negociações Mercosul-União Européia, cujo objetivo era firmar um acordo de liberalização comercial. É o segundo fracasso em negociações com países ricos: o primeiro foi na negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), na qual a questão básica é, obviamente, o acesso ao maior mercado do mundo, os EUA, com seu Produto Interno Bruto de US$ 10,9 trilhões e importações anuais na casa de US$ 1,5 trilhão. Em resumo, depois de anos de negociação, o Brasil não avançou nada no acesso aos dois maiores mercados do mundo. Para um país que precisa dobrar as suas exportações e para um governo, o de Lula, que alardeia esse objetivo, é no mínimo estranho que se privilegiem as relações com os menores mercados do mundo. E que se diga que são os maiores mercados, é simplesmente inacreditável. É verdade que acordo comercial depende de dois lados. É também verdade que Estados Unidos e União Européia apresentaram restrições e dificuldades para avançar nas negociações, sempre muito difíceis. Mas não é menos verdade que a diplomacia brasileira na era Lula entrou nessas negociações com a disposição de pedir tudo e entregar nada – ou seja, com o ânimo implícito de melar a conversa. Lula já não diz que a Alca é uma tentativa dos EUA anexarem o Brasil. Mesmo porque há enormes restrições à Alca dentro dos EUA, da parte de setores que perderiam empregos e negócios para a América Latina no quadro de uma ampla abertura comercial. Estranhos anexadores, que vêem um mau negócio na anexação. De todo modo, é explícita a disposição de Lula de buscar a geografia comercial Sul-Sul e, mesmo, de se tornar o líder dos países emergentes e pobres. Acontece que o objetivo político, liderar o Sul, não bate com o comercial (ampliar comércio externo brasileiro). Exemplo prático: o PIB das Américas alcança cerca de US$ 12,5 trilhões. Mas tirando EUA, Brasil (US$ 500 bilhões) e México (US$ 600 bilhões), não sobra quase mais nada. E sendo que o México tem acordo de livre comércio com os EUA, o que lhe permite ter exportação anual de US$ 170 bilhões, quase o dobro das vendas brasileiras. Tudo bem somado e subtraído, se o Brasil conseguir dobrar suas exportações para o resto da América Latina, isso seria muito menos do que conseguiria aumentando um pouco as vendas só para o Wal-Mart. Por outro lado, a chance de acordos de livre comércio entre países do Sul é menor do que entre Sul-Norte. É que os países em desenvolvimento são parecidos, têm vantagens e carências que se equivalem, de modo que é difícil combinar os comércios. Por exemplo: China (PIB de US$ 1,3 trilhão) e Índia (US$ 540 bilhões), dois gigantes do Sul, têm agricultura pouco competitiva e, por isso, altamente protegida. Não topariam aberturas para o supereficiente agronegócio brasileiro. De outro lado, empresários brasileiros não querem nem pensar em derrubar barreiras para os produtos industriais chineses. Sim, sabemos que os países ricos são campeões em subsidiar produtos agrícolas. Mas há mais chance de lidar com esses problemas no Norte, pois têm peso menor no conjunto de suas economias. Além disso, a Organização Mundial de Comércio tem aprovado as reclamações de diversos países contra tais subsídios, em processos com liderança brasileira. Certamente a diplomacia brasileira deposita confiança na força da OMC, mas está evidente que a instituição mundial, por seu demorado mecanismos de decisão e implementação, não substitui os acordos de livre comércio com os países mais ricos. No balanço, é preciso notar que o Brasil está ficando sem acordos com os ricos do Norte e sem negócios expressivos com os pobres do Sul. Além de ver fazer água um acordo já antigo, o Mercosul, com as rasteiras argentinas. Eis aí, Lula vem com uma velha ideologia terceiro-mundista, a da união dos pobres para “enfrentar os ricos cara a cara” – conforme a expressão usada pelo presidente. Nunca funcionou, basicamente dada a dificuldade de fazer convergir os interesses comerciais dos países em desenvolvimento. Já aqueles do Sul que se dedicaram a exportar para os ricos – Japão, nos anos 50, Coréia dos anos 60, e China, agora – se deram muito bem. Que o presidente tenha a vontade de liderar o Sul, tudo bem. Ele dizia isso na campanha – e ganhou. Mas não faz o menor sentido sustentar que isso apóia a expansão do comércio externo brasileiro. E dizer – “o dado concreto e objetivo é que o mundo é muito maior que os mercados” (de EUA, Japão e União Européia) – é um erro monumental. Erro de fato, de números. Que esse erro sustente a diplomacia comercial brasileira, é inacreditável. Será que o presidente Lula acredita nisso ou está tentando vender seu peixe? É difícil saber qual a alternativa pior. Publicado em O Estado de S.Paulo, 24/10/04

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