. Caíram na real
O professor Eduardo Giannetti constata, com propriedade, que o governo Lula encerra o ciclo político iniciado em 1985. O seguinte: as três principais forças de oposição ao regime militar já foram testadas no comando do país redemocratizado. O primeiro a chegar lá foi o PMDB, com o governo Tancredo Neves/José Sarney/Ulysses Guimarães. Collor foi um estranho no ninho, rapidamente afastado. Passado o interregno de Itamar Franco, o PSDB assumiu por oito anos. Finalmente, Lula, representando as forças que estavam mais à esquerda no combate ao regime militar, chegou ao Palácio do Planalto com a mensagem da esperança na grande mudança.
Na verdade, porém, foi a terceira onda de esperança ? e o terceiro choque de realidade. O primeiro governo, montado por Ulysses e Tancredo, se atribuiu a tarefa histórica de inaugurar a Nova República. Não bastava assumir a administração do país e o comando da política nacional. Inaugurava-se uma nova era em tudo.
Dizia-se então que a política econômica do regime militar havia sido feita para as elites e o grande capital. Mesmo o período do milagre ? os anos de crescimento acelerado ? era desmerecido por ter gerado concentração de renda.
Com a Nova República, a demandas sociais dos mais pobres ganhavam prioridade, salários viriam na frente do capital.
Quando o governo Sarney chegou ao fim, seus integrantes e o pessoal do PMDB sentiam forte desconforto quando alguém lembrava a expressão Nova República. Seu legado era uma hiperinflação e a derrocada do PMDB, com o massacre sofrido por Ulysses nas eleições presidenciais. Collor venceu, com uma agenda liberal, bem diferente do espírito trabalhista e social-democrata, à antiga, que dominava a oposição ao regime militar.
Mas Collor não vingou e logo chegou a vez da segunda força, o PSDB, formado pelos que haviam se decepcionado com o PMDB. O governo tucano foi um evidente avanço com o Plano Real, o início do saneamento e a reorganização das finanças públicas, as privatizações, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a introdução do Banco Central independente e o sistema de metas de inflação. Pode-se dizer que seus quadros foram os que melhor e mais rapidamente se adaptaram à realidade. Mas não entregaram o crescimento econômico, abrindo caminho para a decepção do povo.
O PT passou o tempo criticando tudo isso que estava lá. Reparem: a crítica petista ao governo tucano foi, no essencial, a mesma que toda a oposição fazia ao regime militar. O início do governo Lula parecia a Nova República ? a hora da grande mudança.
Mas a julgar pelas últimas pesquisas, os eleitores, assim como se decepcionaram com o PMDB e com o final do governo tucano, razão pela qual resolveram dar a chance a Lula, estão de novo decepcionados. E o pessoal do PT que está no governo passa por experiência semelhante à sofrida pelos quadros do PMDB e do PT: o choque de realidade.
Para o PT, o último da fila, o mais ideológico , a experiência é mais sofrida. Seus militantes tinham programa novo e revolucionário para tudo, da pesca artesanal à política cambial.
Chega lá e a inflação não é de esquerda, nem de direita. Não existe dívida pública do bem e do mal, apenas a dívida que exige pagamento de juros. E assim vai. Não é por acaso que a única política mais ou menos bem sucedida de Lula é a econômica, uma óbvia seqüência do que foi plantado pelos tucanos. A parte social é o Bolsa Família, também uma ampliação do que foi lançado no governo FHC.
Alguns, como o ministro Palocci, aprendem logo que não há revolução, mas, se fizerem bem feito, um difícil avanço em relação ao que herdaram.
Outros, na esquerda do PT, continuam esperando a ?verdadeira? Nova República. Será que o eleitorado vai comprar mais essa ilusão?
As pesquisas Ibope e Datafolha da semana passada sugerem que não. As eleições de 2006 terão conteúdo muito diferente. Tirante a senadora Heloisa Helena, nenhum candidato poderá se apresentar como o dono da esperança na grande mudança. Todos terão passado pelo governo federal e, em vez de miragens, vão falar do que fizeram e do que não conseguiram.
Isso é bom ou é ruim?
A decepção do eleitorado certamente não é boa coisa. Já tem muita gente que vai lá atrás para dizer que essa democracia prometeu muito e entregou pouco. Não é culpa do eleitorado. Todas as três forças anti-regime militar em algum momento associaram a democracia com crescimento e bem estar, em vez de tomar o valor da democracia pelo que é, ela própria, e pronto.
Por outro lado, o choque de realidade é positivo. Quem sabe os candidatos presidenciais não serão levados a tratar concretamente de coisas como a dívida pública, o principal problema nacional? Falando em heranças
O presidente Lula vangloriou-se da valorização do salário mínimo em seu governo. De fato, em dezembro de 2002, o trabalhador que recebia um salário na cidade de São Paulo precisava trabalhar 174 horas e 36 minutos para comprar a cesta básica, conforme a pesquisa do Dieese. Em novembro último, com 135 horas e 25 minutos comprava a mesma cesta ? quase 40 horas a menos.
Mas eis uma outra conta: em dezembro de 1994, o trabalhador, sempre no município de São Paulo, precisava pegar no batente por nada menos que 274 horas e 44 minutos para comprar a cesta básica. Em dezembro de 2002, final dos oito anos de FHC, eram 174 hs e 36 minutos.
A redução de 100 horas do período FHC dá uma média de 12 horas e meia por ano. No caso de Lula, a média fica em torno de 13 horas, praticamente igual. Portanto, temos aí mais um caso de política mantida, a de valorização real do salário mínimo.
Também é a mesma, hoje, a consequência dessa política: o crescimento contínuo do déficit da Previdência Social. É disso que se trata agora. Publicado em O Estado de S.Paulo, 19/dezembro/2005