SÓ O BC ATACA A INFLAÇÃO

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Para se ter uma idéia de como o Brasil mudou e mudou muito rapidamente: no primeiro semestre deste ano, a indústria automobilística vendeu aqui 1,4 milhão de veículos, mesmo volume que havia vendido durante os 12 meses de 2003. É como dobrar as vendas em cinco anos.
No mesmo período, o crédito concedido às pessoas e empresas saiu de um valor equivalente a 24,5% do PIB para, provavelmente, alcançar os 40% neste ano. Não é coincidência. Hoje, a maior parte das vendas de veículos se faz a crédito e muitos negócios saem a prazo longo.
Crédito em expansão é consequência direta da estabilidade macroeconômica que o país conquistou. Só pode haver crédito, sobretudo longo, quando financiadores, vendedores e compradores acreditam que o mesmo real estará lá no final do prazo.
Outro exemplo de forte mudança: as vendas de máquinas agrícolas, no primeiro semestre deste ano, subiram 52,4% sobre o mesmo período de 2007. Também foi recorde a venda de caminhões, 57,2 mil, no último semestre.
Isso foi decorrência do bom desempenho do agronegócio, da mineração e da construção civil. Os dois primeiros setores devem seu espantoso crescimento, principalmente, às exportações, puxadas pela forte expansão da economia mundial no período 2003/07.
Já a construção civil vem puxada pelos ganhos de renda do trabalho e pela volta do crédito. Nos dois casos, de novo, efeito direto da estabilidade.
Eis por que a gestão da política econômica hoje exige muito cuidado. Há duas ameaças no ar: à estabilidade monetária e ao comércio externo.
A inflação continua em aceleração e se espalhando pelos diversos setores. Uma alta muito forte compromete a concessão de crédito e desvaloriza a renda do trabalho. Aliás, já desvalorizou. Dados dos IBGE mostram que o rendimento médio de maio caiu 1% em relação a abril.
Mais grave ainda, a expectativa de inflação está em alta e a confiança do consumidor, em baixa.
Não se trata de uma ?inflação do feijãozinho?, como dizia o ministro Guido Mantega algumas semanas atrás, nem de uma inflação exagerada pela imprensa, como disse mais recentemente.
É verdade que, pelos efeitos da mesma estabilidade conquistada em anos anteriores, a inflação coloca hoje um problema, digamos, civilizado. O índice está subindo de 4,5% para 6,5% em um ano, o que pode ser visto como benigno ou maligno.
Olhando para trás, antes do Real, se fazia 6,5% numa semana. Logo, isso em um ano é refresco.
Mas o Brasil pré-Real era um país anormal. Tinha todos os defeitos macroeconômicos: inflação alta e crônica, contas públicas descontroladas e dívida externa ?impagável?. Anos de reformas e privatizações levaram à estabilidade.
Ora, em um país normal, se a inflação vai de 4,5% para 6,5% em apenas 12 meses, isso é um choque, que exige resposta forte.
Só o Banco Central parece ter percebido isso. E, a rigor, só o BC está agindo, com a única arma que pode disparar sem pedir autorização para ninguém: a alta da taxa de juros.
O resto do governo Lula, especialmente o Ministério da Fazenda, sai pela tangente. Por exemplo, dizer que se vai combater a inflação com o aumento da produção é uma bobagem sem tamanho.
Na verdade, tem um ponto positivo aí. Até pouco tempo, a Fazenda não admitia que pudesse existir esse tipo de inflação, por excesso de consumo em relação à produção.
Mas falta entender que aumentar a produção é, primeiro, aumentar o consumo (a demanda). Por exemplo: a montadora que investe numa nova fábrica sai a mercado para comprar cimento, aço, madeira, ferro etc.etc.. Pressiona assim, de imediato, os preços da construção civil, que já estão em alta. E só vai entregar os veículos, cuja demanda está alta hoje, lá na frente, quando a nova fábrica estiver operando.
Isso vale para todos os demais setores. Aumentar financiamentos agrícolas para obter uma safra maior é obviamente positivo. Mas, no momento, o investimento do fazendeiro financiado é consumo para entregar alimentos só lá na frente. Não resolve a inflação atual, ao contrário a estimula. Aliás, no último Relatório de Inflação, o Banco Central escreveu: ?o investimento tem se apresentado como o componente mais dinâmico da demanda doméstica?.
Alguém dirá: mas se não houver investimento, aí mesmo é que não se resolve o problema. A capacidade de produção nunca dará conta do consumo.
Óbvio. Tão óbvio que não explica nada. O caso é que não é possível que todo o país acelere o consumo ao mesmo tempo. Para ir direto ao ponto: o governo tem que consumir menos (gastar menos) se quer deixar mais espaço para o setor privado. E mesmo aqui, é preciso moderar.
Por exemplo: vendas e produção na indústria automobilística vêm crescendo a taxas entre 25% e 30% anuais, o que parece insustentável.
Em resumo, seria preciso uma política econômica mais eficiente que atacasse em duas frentes: reduzir o gasto público e tentar disciplinar crédito e investimentos no setor privado. Isso para não deixar todo o serviço para o Banco Central.
Mas a ?melhor? idéia que o Ministério da Fazenda teve foi esse Fundo Soberano, cuja única função clara até hoje é a de ?guardar? um dinheiro dos impostos equivalente a 0,5% do PIB. Mas isso poderia ser feito pelo Tesouro, aliás já está fazendo, sem qualquer pirotecnia.
O fato é que a Fazenda, quando Mantega assumiu, não precisava fazer nada de novo. A coisa estava simplesmente andando. Agora que complicou e precisa fazer, não sabe e/ou não consegue.
E o que fazer diante da desaceleração óbvia da economia mundial e da volta do déficit nas contas externas? Outro ponto que está suspenso ?e é tema de um próximo artigo.
Publicado em O Estado de S.Paulo, 07 de julho de 2008

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