DÉFICIT ZERO – 3-

. Déficit zero, grande idéia (3)     
Acreditem: prosperou o debate em torno da proposta de déficit zero para as contas públicas. É surpreendente, dada a quantidade de fatos simplesmente espantosos que se sucedem. Ou não é espantoso que se encontrem notas fiscais da agência de Marcos Valério sendo queimadas no quintal de uma casa que escondia também um arsenal de armas leves e pesadas? Só não é mais espantoso porque também não é todo dia que se apanha um petista com cem mil dólares na cueca, um pastor com R$ 10 milhões no jatinho da Igreja Universal e tanta gente mentindo.     
Haja notícia. E embora assim ocupada, a imprensa ainda encontra espaço para colocar a discussão sobre contas públicas ? assunto aborrecido em circunstâncias normais, estranhíssimo nestes dias. Com tanta gente sacando e carregando dinheiro vivo, dinheiro cuja origem é sempre o governo, como falar em austeridade fiscal?     
Mas se fala. A proposta, inicialmente levantada pelo deputado Delfim Netto, ganhou apoios e críticas, aqui comentados nos dois últimos artigos. A esta altura, pode-se dizer que a questão divide economistas e políticos em dois grandes grupos: de um lado, estão aqueles que vêem na dívida e no déficit públicos o grande obstáculo ao desenvolvimento do país; de outro, estão aqueles que vêem nos juros elevados pagos pelo governo a causa principal do déficit e da dívida.     
O primeiro grupo entende que a taxa de juros só pode cair depois que caírem dívida e déficit, isto por meio de um forte corte de gastos públicos de custeio. O segundo grupo entende que os juros poderiam cair imediatamente se o Banco Central tomasse política mais desenvolvimentista e menos comprometida com os grandes credores do governo (os rentistas). Seria apenas uma questão de vontade e escolhas políticas.     
No primeiro grupo, há divergências sobre como encaminhar a idéia de  redução dos gastos. Alguns propõem a meta do déficit zero para o conjunto das contas públicas, hoje em torno de 2,5% do Produto Interno Bruto. Outros acham que isso pode inviabilizar a política de metas de inflação, pois o BC não poderia elevar juros, quando isso fosse necessário para deter a inflação, porque aumentaria a despesa financeira do governo e estouraria o déficit. Por isso, propõem metas de contenção do gasto público e limites para a arrecadação de impostos. O pessoal favorável à fixação do objetivo do déficit zero concorda com a definição dessas submetas. Mas coloca fé na força política e de marketing do déficit zero, como objetivo mobilizador de uma sociedade já cansada de pagar tanto imposto para serviços tão ruins. Tudo misturado, dá numa proposta de forte redução do gasto público de custeio e do tal choque de gestão. Já o segundo grupo acha isso uma enorme bobagem. Para seus integrantes, é preciso, ao contrário, aumentar o gasto público, sobretudo nos programas sociais. Como fazer isso? Combatendo a corrupção e a sonegação e reduzindo a conta de juros. Sobretudo hoje, não haverá oposição ao combate à corrupção e sonegação. Já em relação à conta de juros, é mais complicado. A propósito, a última edição da revista Conjuntura Econômica (julho) traz na Carta do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) um interessante e útil exercício. Imagine que o pessoal do segundo grupo chegue ao governo e consiga aplicar uma completa ?reestruturação da dívida pública?, isto é, um calote total. Com isso, zera a conta de juros. Ora, quanto se economiza? Muito pouco, diz a Carta. Nos últimos anos, o pagamento de juros tem sido de 7% do PIB, na média. Mas 4% correspondem à correção monetária da dívida, de modo que o gasto real é de 3%. Ora, o setor público brasileiro (governos federal, estaduais e municipais) arrecada 36% do PIB de impostos e ainda faz um déficit nominal de 2,5% do PIB. Portanto, gasta de fato 38,5% do PIB, por baixo. Mesmo tirando disso a conta total de juros, os 7%, sobra um gasto de 31,5% do PIB. É muito ou é pouco? É muitíssimo. Nos países emergentes bem sucedidos, o gasto público total, sem calote na dívida, é de no máximo 25% do PIB. Na média, 20% do PIB, sendo, pois, desse tamanho a carga tributária necessária para financiar o governo. Ou seja, mesmo dando calote na dívida e zerando a conta de juros, o gasto público no Brasil ainda seria dez pontos percentuais do PIB acima da média dos emergentes. Claro que a carga tributária seria maior na mesma proporção. Mas o pessoal que defende a redução ou cancelamento dos juros acha que, com isso, sobra dinheiro para gastar no social ? de maneira que não é para economizar e sim para transferir gastos. E lá se vai a despesa pública para os quase 40% do PIB, já o dobro da média dos emergentes. É esse gasto que torna necessária a carga tributária e que, afinal, eleva a dívida, os juros e faz com que o Estado já não caiba no PIB. A Carta do Ibre nota também que a despesa previdenciária no Brasil equivale a 12% do PIB, quase o dobro da conta de juros. Esse é o maior problema para o pessoal do primeiro grupo. Imaginem, sugere a Carta, que uma feroz ditadura de direita assuma o poder e simplesmente cancele todos os pagamentos de aposentadorias e pensões. Reclamou, vai em cana. Resolve? Não. A despesa pública cai para 26,5% do PIB, ainda elevada. Imagine-se então um governo que junte a extrema esquerda e a extrema direita, culminando com um calote duplo: suspensão do pagamento de juros e de aposentadorias. O gasto público cairia para 20% do PIB, ainda um pouco acima da média dos países emergentes. Ou seja, precisamos supor um absurdo completo para formar a hipótese na qual o gasto público no Brasil fica quase normal. Conclusão: tem razão o primeiro grupo. O grande, o enorme problema do Brasil está no tamanho do setor público, que arrecada demais, gasta demais e gasta mal. A alta taxa de juros depende disso, de modo que o calote não resolve nada, nem abre espaço para mais gastos. Nos demais países emergentes, o setor público gasta bem menos e nem por isso os serviços são piores. Ao contrário, são melhores em muitos casos. Está na cara que governo e estatais no Brasil gastam mal. Reparem nos acontecimentos recentes. Mesmo quando o pessoal das estatais e bancos públicos diz que tal despesa, como de propaganda, não foi ilegal, tem enorme dificuldade para justificá-la tecnicamente. Ou faz sentido o Banco do Brasil gastar 70 mil reais comprando ingressos para um show do PT? E isso que se soube. Imaginem o que vai aparecer. Resumo da ópera: um dos efeitos positivos desta crise será provar que é preciso reduzir o Estado, inclusive com privatizações. Publicado em O Estado de S.Paulo, 18 de julho de 2005

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