SALVANDO PRIVILÉGIOS

. Salvando privilégios A reforma da previdência, tal como desenhada no relatório do deputado José Pimentel, é um retrocesso em relação à proposta original, mas claramente um avanço em relação à situação atual. Por isso os mercados e os meios econômicos manifestaram alívio. Temiam coisa pior. A questão agora é saber se os avanços resistem até a votação. O governo Lula diz que a proposta refeita é final. Mas dizia a mesma coisa antes e o que se viu foi nova manifestação de um fenômeno histórico: a capacidade aparentemente infinita da elite do funcionalismo público para ganhar e manter privilégios. E, como tem ocorrido de tempos para cá, essa estrita categoria contou com o apoio da esquerda, agora no governo. É bem possível que tal combinação se repita, de modo que o pessoal vá restabelecendo vantagens no curso da votação e mesmo depois, na implementação da reformas. Convém lembrar um caso exemplar: a aposentadoria integral dos funcionários públicos já foi eliminada pelo Congresso, em votação de emenda constitucional. É, isso mesmo. Foi a emenda 20, apresentada e trabalhada pelo governo FHC, que colocou no artigo 40 da Constituição: União, Estados e Municípios não pagarão mais o salário integral da ativa aos que se aposentarem. Definiu-se que o teto para as aposentadorias do setor público seria o mesmo do INSS, ficando qualquer coisa além disso por conta de fundos complementares de capitalização, públicos ou privados. Definiu-se, entretanto, que essa nova regra só valeria para os funcionários que entrassem no serviço depois de aprovada a reforma. Mas arranjou-se também para que a regra só valesse para os novos funcionários a partir do momento em que os tais fundos complementares fossem definidos em lei complementar. O governo FHC enviou o projeto de lei – o famoso PL 9 – que ficou rolando no Congresso, até ser descartado pelo governo Lula, sob o argumento de que tudo seria contemplado no novo projeto de reforma da Previdência. Eis aí, um dos avanços que a atual administração alardeia como essencial – o fim da integralidade para os futuros funcionários – já foi votado antes e poderia ter entrado em vigor com a simples aprovação do projeto dos fundos de pensão. Por que o PL 9 ficou para trás? Porque previa um sistema de “contribuição definida”: a complementação da aposentadoria seria proporcional à contribuição paga pelo funcionário e pelo governo, na proporção de um para um. Maior a contribuição que saísse do bolso do funcionário, maior o benefício. A elite do funcionalismo e seus aliados de sempre – que vão da esquerda à direita, incluindo os clientelistas de qualquer ideologia – boicotaram o projeto e tentaram transformar o sistema para “benefício definido”. Ou seja, define-se previamente quanto o aposentado vai receber e o fundo terá que pagar esse valor, tenha ou não a capitalização proporcionado os fundos necessários. Mas como o fundo pagaria se não tivesse o dinheiro? tal é a pergunta ingênua. Simples, manda-se a conta para o governo, isto é, para o contribuinte. Eis porque as corporações estão exigindo que qualquer fundo complementar de aposentadoria seja sempre público e não privado. É claro. Nenhuma instituição financeira privada com um mínimo de respeito por seus acionistas e clientes toparia um fundo com benefício definido. Não teria o recurso ao bolso dos contribuintes. A mesma história aparece agora. Esse novo grande sindicato nacional, o Judiciário, já conseguiu garantir a aposentadoria integral para os atuais servidores. Com relação aos futuros, que ficariam limitados ao teto do INSS, o Judiciário quer a constituição de fundo específico para os juízes, que pague uma complementação de modo a recompor o último salário da atividade. Benefício definido, portanto. Cálculos atuariais indicam que a contribuição teria de ser muito elevada para garantir a capitalização necessária. Ou então a alternativa é que o fundo seja público, ficando o Estado responsável final pelos pagamentos, tudo isso fixado na Constituição. Muda a rubrica no orçamento, mas o pagamento da aposentadoria integral sem a necessária contribuição do beneficiado volta a ser garantida com o dinheiro do contribuinte. Está clara, portanto, a estratégia. Primeiro, salvar a integralidade para os atuais servidores. Depois, resgatá-la para os futuros pela via da regulamentação dos novos fundos públicos. Claro que, além do Judiciário, todos os setores do funcionalismo vão querer seus próprios fundos, nos mesmos moldes. Tudo considerado, há dois importantes avanços na reforma da Previdência em seu estado atual, a contribuição dos inativos e as regras que dificultam as condições para obtenção da aposentadoria integral: 60 anos de idade mínima para homens (55 para mulheres), 35 anos (30) de contribuição, 20 de serviço público e 10 no cargo. Isso adia aposentadorias e, portanto, adia gastos do governo, aliviando as contas de imediato. A contribuição dos inativos proporciona ganho fiscal permanente. Mas o privilégio da aposentadoria integral fica mantido por muitos anos. E muitos mais se conseguirem restabelecê-la via fundos públicos de complementação. O ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, garante que mesmo os fundos públicos terão regras atuarias corretas, sem nenhum privilégio especial. Mas terá que fazer muito esforço para manter essa garantia. Outras já caíram. Em qualquer caso, e apesar do alívio dos próximos anos, o déficit previdenciário continuará elevado, pressionando as contas públicas, limitando a capacidade de poupança e investimento do Estado. O problema, que é o maior obstáculo ao equilíbrio das contas públicas, continua na agenda. E esta reforma não é uma grande contribuição ao espetáculo do crescimento anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Publicado em O Estado de S.Paulo, 21/07/2003

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