QUEM SABE COMPRAR UM COMPRIMIDO?

. –As pessoas sabem o que melhor para elas, não sabem?—

Brasileiros e brasileiras a partir dos 16 anos têm discernimento para eleger o presidente da República ? tal é o entendimento dominante na sociedade brasileira. Teriam essas pessoas a mesma capacidade para escolher um comprimido para dor de cabeça?
A pergunta parece absurda, mas é exatamente a questão colocada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa. ao tentar impor regras novas para as farmácias. Para a Anvisa, que tem o apoio de conselhos de farmacêuticos, as pessoas comuns precisam da intermediação ou da assistência de um balconista para comprar mesmo os medicamentos que não exigem receita.
Pelo sistema vigente há tantos anos, esses medicamentos simplesmente ficavam expostos nas gôndolas, ao alcance dos consumidores. Bastava pegar, ir ao caixa, e pronto.
Para a Anvisa, isso é perigoso, estimula a automedicação e pode levar a um consumo exagerado. As pessoas comprariam por impulso, conduzidas pelo momento, pela propaganda, pela embalagem, sabe-se mais o que.
Assim, a regra nova ? que está suspensa em grande parte das farmácias por decisões judiciais ou legislação estadual ? determina que aqueles medicamentos fiquem atrás do balcão, de tal modo que o cliente precisa solicitá-los ao vendedor.
Qual a diferença, além de um estorvo?
Imaginando pelo limite: o consumidor aparece com um pedido de compra enorme de analgésicos. Alguém acredita seriamente que o vendedor se recusará a fechar o negócio? Digamos que o balconista ainda pergunte: mas por que o senhor quer tanta coisa? E o consumidor, mal humorado, responda: não é da sua conta.
Pode o vendedor negar a venda? Não pode. Não há lei que proíba uma pessoa de comprar 50 envelopes de analgésicos. O consumidor poderia até acusar o vendedor de discriminação.
Admitamos que o balconista consiga não fazer a venda. O que faz o consumidor? Vai a outras farmácias.
Mas o vendedor pode orientar o comprador, tal é a alegação.
Pode?
Difícil. Esse funcionário do balcão não é farmacêutico. Pode ter experiência, mas raramente será um técnico treinado no assunto. Sim, ele pode chamar o farmacêutico que deveria estar ali 24 horas. Pode, talvez, num estabelecimento pequeno, não certamente nas lojas maiores, dado o intenso movimento.
Além disso, sabe-se que muitas farmácias não cumprem a regra de ter sempre um farmacêutico por ali.
Eis um ponto interessante: em vez de encontrar um meio de resolver esse problema, a Anvisa cria outras regras, que complicam a vida daquelas farmácias que já cumprem as atuais e mantêm o profissional de plantão.
Outro ponto: todo mundo sabe também que se compra sem receita medicamento que exige receita. Todo mundo sabe também que se compra de antigripais a Viagra nos camelódromos de contrabando. Lembram quando, por ocasião do surto de gripe suína, o Ministério da Saúde proibiu a venda de Tamiflu nas farmácias? Pois então, o remédio apareceu em diversos locais e na internet, por fora e sem receita.
Não seria a prioridade o combate a esse tipo de comércio ilegal?
Nos últimos dias, a Anvisa deu umas incertas em algumas dezenas de farmácias, talvez para marcar o início legal das novas normas.
Mas não é o que se vê como ação permanente. Não ocorre apenas com as farmácias. Por toda a parte, há uma enorme informalidade na economia brasileira. Ao lado disso, o governo impõe um monte de regras para os formais, criando uma situação absurda de desvantagem competitiva para quem cumpre a lei.
Mas por trás dessa história das farmácias, há uma concepção social e econômica. No social, trata-se da idéia segundo a qual a pessoa não sabe cuidar de si e por isso precisa do cuidado ou da proteção permanente do Estado. Um pensamento perigoso, base do autoritarismo. Se o Estado sabe mais do que o indivíduo, tem todo o direito de limitar e coibir a liberdade individual.
Na vertente econômica, esse pensamento acredita que o consumidor é um bobalhão, vítima eterna das empresas e suas manobras para empurrar qualquer porcaria. Por isso, precisa da proteção dos sábios burocratas do governo.
Muita gente pensa assim no Brasil, este país sem tradição liberal. Normalmente, as pessoas buscam soluções no governo. Parece mais fácil, mas não funciona.
Considerem, de novo, o caso dos remédios. Muitas vezes, quando o médico vai receitar um remédio contra dor, ele pergunta ao paciente com qual medicamento está mais habituado, com qual se dá melhor. E é assim mesmo.
A leitora e o leitor sabem de quais medicamentos precisam, isso no dia a dia, claro, para uma dor de cabeça, uma indisposição, uma ressaca. Pelo menos, sabem melhor do que o balconista.
Mas a Anvisa não pensa assim.
Temos, portanto, dois modelos, que revelam concepções opostas. Nas drogarias americanas, encontra-se de tudo que não precisa de receita e com enorme variedade. A propaganda de medicamentos também é muito ampla e mais freqüente na mídia.
Em compensação, a venda de medicamentos controlados é extremamente rigorosa. Quase nunca a pessoa leva o remédio na hora. Tem de deixar a prescrição, que é registrada on line, checada e só então liberada. Por exemplo, se aparecem muitas receitas de calmantes de um mesmo médico, dá problema.
Há ampla liberdade de decisão das pessoas, assim como as empresas, fabricantes e farmácias, têm espaço para oferecer e vender seus produtos. Mas são pesadamente responsabilizadas caso façam a coisa errada, desde produtos mal feitos até propaganda enganosa.
Já o nosso sistema procura limitar cada vez a liberdade de consumidores, fabricantes e distribuidores.

Publicado em O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 2010

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