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Quando as crianças podiam votar

Quando as crianças podiam votar

 

Carlos Alberto Sardenberg

 


Talvez nem fosse permitido pela lei eleitoral, mas os mesários toleravam, de bom grado, que pais e avós levassem filhos e netos para votar. Isso mesmo, votar. Às crianças mais crescidinhas e mais espertas era dada a oportunidade de apertar as teclas da urna eletrônica, em nome da família.

Uma diversão, brincadeira, mas também uma verdadeira aula de educação moral e cívica – não daquele tipo de doutrinação imposta pelo regime militar nos anos 70. Crianças percebiam a importância do ato.

Ingenuidade? Saudosismo das antigas? Pode ser, mas o ambiente eleitoral era realmente diferente, para melhor, antes de 2018. E muito mais saudável do que nos dias de hoje.

Há algum tempo, os juízes do Tribunal Superior Eleitoral sequer cogitariam de proibir celulares na cabine de votação. E, sim, mesários também toleravam que pais e avós fotografassem as crianças por ali.

Já neste ano, a decisão do TSE de proibir os celulares foi correta e tomada a tempo. Pelas redes sociais, já dava para perceber que muita gente se preparava para montar videos fake e espalhar falsidades sobre a segurança das urnas.

Também se discute, no TSE, sobre a porte de armas no dia e nos locais de votação. A discussão já é um péssimo sinal. Por que o eleitor desejaria entrar com uma pistola na sessão de votação? Ou porque pretende fazer coisa errada ou desconfia que alguém tentará ameaçá-lo. Péssimo de todo modo.

Em resumo, está na cara que ninguém pode votar armado de qualquer coisa que não seja sua ideia.

E entretanto, estamos discutindo isso tudo.

Não há dúvida que o presidente Bolsonaro é o primeiro responsável por esse ambiente tóxico. É dele e de sua turma que partem as ameaças ao sistema eleitoral. É nesse grupo que se cogita de golpe.

Há uma distância enorme entre manifestar preferência por uma ditadura – na conversa de bar ou nas redes – e agir concretamente para mobilizar e financiar ações golpistas. No primeiro caso, trata-se de um tipo de opinião que até aparece em pesquisas aqui e no mundo todo. Muita gente ainda acha que a democracia não é um bom ambiente para apoiar o crescimento econômico.

Essa é a doutrina chinesa, a de Putin e a dos empresários bolsonaristas. Claro que estão pensando em diferentes ditaduras, mas no final dá no mesmo: a supressão das liberdades e direitos individuais e sociais.

Na primeira eleição depois da queda da ditadura, em 1989, Collor espalhou um tipo de terrorismo. Dizia que a vitória de Lula – bem antes do modo “paz e amor” – seria um triunfo do esquerdismo e, pois, uma ameaça à liberdade e à propriedade privada.

Mas não se falava em golpe. E terminou que o próprio Collor, eleito, aplicou um dos maiores golpes à noção de propriedade privada, com o confisco da poupança. Para provar, afinal, que direita e esquerda erram igualmente em matéria de economia. E que ações autoritárias, como tomar o dinheiro das pessoas, são um a tentação para direita e esquerda.

O plano econômico fracassou espetacularmente e Collor caiu acusado de corrupção. Não foram bons momentos para a história nacional, mas pelo menos pode-se dizer que a então novíssima democracia funcionou bem. O presidente foi afastado, o vice, Itamar Franco, assumiu, cumpriu o mandato regular e as eleições seguintes se deram livremente, na data certa. E pais e avós puderam votar com suas crianças.

A realização das eleições livres na data certa e a posse dos eleitos – eis a base da democracia. Por isso mesmo, essa conversarada sobre golpe requer extrema vigilância. Assim como esse ativismo político de chefes militares.

No tempo da ditadura, jornalistas de política precisavam adquirir uma estranha habilidade: ler discursos de comandantes militares para tentar adivinhar tendências do regime.

Com a democracia e o regime civil, jornalistas deixaram os quartéis e foram para os parlamentos.

É o fim da picada que a gente esteja de novo tentando interpretar os recados de chefes militares. Mas é uma vigilância necessária.

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