PROPOSTAS DE MORATÓRIA, DE BRINCADEIRA OU A SÉRIO?

. Artigos A moratória era de gozação. Mesmo? Disseram depois que o ex-presidente argentino Raúl Alfonsín estava de gozação quando sugeriu que o governo de seu país decretasse uma moratória dos pagamentos externos no ano que vem. Disseram ainda que Alfonsín não manda mais nada e que seu cargo atual, presidente da União Cívica Radical, é quase honorário, embora seja o partido do presidente da República, Fernando De La Rúa. Alfonsín nem fala com De La Rúa, completaram fontes do governo argentino. Pode ser, mas muita gente tomou a sério, inclusive investidores que andaram derrubando a cotação dos papéis argentinos. A história inclusive respingou no Brasil, com o mercado alegando a “moratória argentina” como um ingrediente a mais na subida do dólar na sexta-feira. Como ficamos? Se Alfonsín estava de brincadeira, então são idiotas todos os que acreditaram na declaração, aí incluídos investidores, analistas e o próprio ministro da Economia da Argentina, Jose Luis Machinea, que saiu correndo a desmentir a proposta. Nesse caso, a pergunta é outra: como é que tanta gente se abalou com uma gozação? E a resposta é simples: a proposta de moratória não é brincadeira. Muitos políticos, lá e aqui, a consideram uma boa idéia, sobretudo do modo como Alfonsín a apresentou. Mais ou menos o seguinte: o governo argentino tem pagamentos externos de US$ 21 bilhões no ano que vem; não paga e investe os 21 bilhões no país; isso gera crescimento; com os frutos desse crescimento, volta-se aos pagamentos externos mais à frente. Legal, não? Ocorre que o governo argentino não tem os 21 bilhões de dólares. Todo seu esforço é demonstrar seriedade na gestão das contas públicas para, com essa moral, vender títulos no mercado internacional, levantar os 21 bilhões e assim cobrir os vencimentos do ano. Não vai, portanto, matar a dívida, mas rolar. Assim, se não pagar, não sobram 21 bilhões. Sobra apenas a dívida. Mas os defensores da moratória podem ainda argumentar que o objetivo é justamente levantar os 21 bilhões no mercado internacional e, em vez de pagar os especuladores, aplicar esse dinheiro em investimentos produtivos. E aí só pode ser mesmo de gozação. Então, você dá um calote de 21 bilhões no mercado internacional e ainda acha que vai levantar os 21 bi nesse mesmo mercado? Eis aí: o encanto (muitas vezes ingênuo) da idéia da moratória da dívida externa ou interna está no argumento de que deixando de pagar aos especuladores sobra dinheiro para gastar com os pobres. Mas se um governo (ou um país) tem dívidas é porque está gastando mais do que ganha. Nessa circunstância, precisa de mais financiamento. Se não paga compromissos anteriores, perde acesso a novos financiamentos e aí acontece o contrário do que pensam os Alfonsíns (ou Itamares): não sobra dinheiro. Falta, inclusive para os pobres. Há um equívoco parecido na questão de como gastar o dinheiro das privatizações, com pagamento de dívida e com gastos em programas sociais? O encanto é o mesmo: por que privilegiar credores (especuladores) em vez de atender os pobres? Mas aqui a resposta é ainda mais simples. Quanto menos dívida houver, menor será o gasto com juros e, pois, sobra mais para outras despesas. Entende-se melhor levando a hipótese ao limite. Vamos supor que as estatais federais (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, bancos estaduais, as empresas do setor elétrico, o prédio do TRT do Lalau, outros terrenos, o bondinho do Pão de Açúcar e o que mais se pudesse catar por aí) valessem 450 bilhões de reais, exatamente o valor da dívida pública. A 16% ao ano, essa dívida custa algo como 70 bilhões de reais. As estatais nem de longe geram isso de lucro. Ora, faz todo o sentido vender tudo e zerar a dívida. De repente, o governo teria 70 bilhões a mais para gastar – e 70 bilhões todos os anos. É uma montanha de dinheiro. Veja só: daria para elevar o salário mínimo a 300 reais, no que se gastariam 25 bilhões/ano. Com os restantes 45 bilhões, seria possível dar um aumento de 75% para todo o funcionalismo público federal, já que neste ano o governo está gastando cerca de 60 bilhões com pessoal e encargos. Ou então, 200 reais de mínimo, 40% para o funcionalismo e gastar os cerca de 35 bilhões restantes em programas de renda mínima. Daria para entregar 300 reais por mês a nada menos que 10 milhões de famílias, no que seria o mais extraordinário programa de eliminação da pobreza. É isso: o que libera recursos é pagar as dívidas, especialmente com privatização, e não dar calote. Desgraçadamente, as estatais não valem tudo isso. Mas valem muito. E a cada bilhão de dívida eliminada, sobram 160 milhões no orçamento. Mas se é tão lógico assim, pode perguntar o leitor, a leitora, por que tanta gente propõe moratória e ao mesmo tempo se opõe à privatização? Pela minha experiência em palestras, debates e troca de emails com leitores, ouvintes e telespectadores, existe uma mistura de desinformação, preguiça mental, preconceito, defesa de interesses e esperteza. Quando é desinformação e preguiça, pode-se debater, examinar números etc. No preconceito, aí é mais difícil, especialmente quando se trata de preconceito ideológico. Para muita gente, por exemplo, privatização é entregar patrimônio da nação a especuladores, quando não bandidos. Ou seja, a privatização é de direita. É o que pensa muita gente que ainda não se conformou com a incrível sobrevivência do capitalismo. Na verdade, privatização não é caso de ideologia, não é nem de direita, nem de esquerda. Inclusive existem estatais eficientes por aí. No caso brasileiro, porém, privatizar é uma necessidade prática, um meio de eliminar prejuízos e fazer caixa para abater dívida. (Como uma empresa ou uma família que se desfaz de ativos para equilibrar a situação financeira). Os interesses são de pessoas ou grupos que, por exemplo, perdem com a privatização. Há interesses legítimos – caso dos funcionários que temem perder seus empregos e seus planos de aposentadoria – e ilegítimos – dos partidos ou grupos políticos que não querem perder o direito de nomear nas estatais e dirigir suas atividades para redutos eleitorais. E há os espertos (e/ou demagogos) que vêm na tese um meio de ganhar votos. Diz-se que o bom senso é a coisa mais bem repartida entre homens e mulheres. Mesmo?  

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