PRECISA MESMO PAGAR A CONTA DE LUZ?

. Detalhes Está aberta a discussão sobre o novo modelo do setor elétrico, mas de que adiantará isso tudo se a distribuidora de energia não puder cortar a luz de quem não paga a conta? E é isso que está em debate nos tribunais, uma incrível questão, a de saber se a conta precisa ou não ser paga. A última decisão do Superior Tribunal de Justiça diz que sim, é obrigatório pagar, sob pena de corte do fornecimento. Foi uma sentença da primeira seção do tribunal, publicada na última quarta-feira, num caso Cemig x consumidora mineira. Esta foi à Justiça contra o corte de luz imposto pela distribuidora, alegando que se trata – o fornecimento de energia – de um serviço público, o qual, pela Constituição, deve obedecer ao princípio da continuidade. O argumento, claro, se aplicaria a outros serviços, como fornecimento de água e mesmo de telefone, daí a importância do caso. Se a decisão for favorável ao consumidor inadimplente, será como conceder uma licença geral para dar o cano em todas as prestadoras de serviço público. No caso Cemig, entretanto, o ministro Humberto Gomes de Barros, relator, concluiu: “É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor mantém inadimplência…”. A sentença valeu também para um processo aberto por uma prefeitura fluminense, que pleiteava decisão proibindo o corte de energia de qualquer morador que deixasse de pagar a conta. O juiz disse que é preciso evitar o “efeito dominó”. Claro, se uma pessoa sabe que, deixando de pagar a conta, continuará recebendo a luz, com garantia dos tribunais, por que motivo haveria de pagar? Em pouco tempo, ninguém estaria pagando mais e todo o sistema elétrico desabaria, qualquer que fosse o modelo. Trata-se de uma sentença sobre o óbvio, pode-se dizer. Engano. Segundo órgãos de defesa do consumidor, o assunto não está resolvido. É que, informam, outras turmas do mesmo STJ têm julgado de modo diferente, a favor de consumidores residenciais inadimplentes, aceitando a tese de que um serviço público essencial não pode ser interrompido mesmo não tendo sido pago. Não é de estranhar. Boa parte dos juízes brasileiros entende que sua função não é fazer respeitar os contratos, mas interpretá-los, reinterpretá-los e julgar se são ou não justos e equilibrados. Há um contrato entre fornecedor e consumidor. Um tem de entregar um serviço de qualidade, conforme condições fixadas por lei e pelas agências reguladoras, o outro tem de pagar por isso. E ponto. Mas introduzido o elemento da análise social, o caso toma outro rumo: então um pobre coitado que ganhava um salário mínimo e está desempregado ainda vai ficar sem luz, enquanto a poderosa Cemig acumula montanhas de dinheiro? Posto assim, quem de bom coração não decidiria contra a concessionária? O problema é que não há energia grátis. Alguém vai pagar por ela e, por definição, não pode ser a própria concessionária, que investe e incorre nos custos de distribuição. O governo paga? Até pode ser: assim como fornece Bolsa Escola, vale transporte e vale gás, poderia entregar também um vale-luz. Continua não sendo de graça, pois esse gasto público é financiado por impostos. O governo poderia também retirar os impostos das contas dos mais pobres, o que reduziria de muito o valor. Também não seria grátis, pois outros pagadores de impostos financiariam esse desconto. Pode-se também cobrar mais dos ricos e dar energia mais barata ou de graça aos mais pobres. Isso já é feito, em parte, com os preços menores cobrados dos consumidores até determinado volume de quilowat/hora. Também não é de graça. A conta aí é rachada entre os consumidores. Há, portanto, maneiras de atender as populações mais pobres – e esse é um dos objetivos do governo, o de “inclusão na luz”, digamos assim. Mas financiando, cobrando a conta de alguém. O que não faz sentido é autorizar a inadimplência. Não faz sentido econômico, mas social faz, dirão alguns. Errado, não faz nem justiça social. A inadimplência autorizada quebra o sistema, manda a conta para o setor público, isto é, para todos os contribuintes, e deixa muito mais gente sem luz, tenha ou não pago a conta. Custa a crer que isso seja motivo de controvérsia. Pois é, em vários processos e a decisão final ainda está pendente. É até provável que chegue ao Supremo Tribunal Federal, que teria de responder: a Constituição garante o direito de ter o serviço sem pagar a conta? Eis aí, quando se fala de insegurança jurídica como um dos fatores do risco Brasil, é disso que se trata. Por trás de debate macro sobre o modelo, estão esses detalhes, no micro, de cuja solução depende o fluxo futuro de investimentos nesses setores. No caso, seria necessária uma decisão final do STJ ou do Supremo, de modo a colocar um ponto final. Ah, sim, claro, e uma reforma do Judiciário de modo a determinar que decisões do Supremo são supremas e não podem mais ser contestadas em nenhum tribunal. E outra mudança, de modo a determinar que contratos assinados entre cidadãos responsáveis são contratos para valer, cabendo ao juiz garantir seu cumprimento. Agenda micro é isso aí. Baita agenda. Publicado em O Estado de S.Paulo, 15 de dezembro de 2003

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