POR QUE O MERCADO É DURO COM O BRASIL?

. Só países brancos podem O economista americano Paul Krugman escreveu certa vez que “países brancos” podem cometer certas estripulias, como manter déficits elevados, sem risco de serem atacados pelos mercados internacionais. Nessas circunstâncias, o mercado parece entender que a deterioração dos fundamentos econômicos é apenas um momento adverso e que tudo voltará ao equilíbrio em um par de anos. Um exemplo de “país branco” para esse caso é a Austrália. Durante a crise dos tigres asiáticos, em 1997/98, a Austrália seguiu em frente com seu déficit externo acima dos padrões , mesmo estando ali por perto e mantendo relações econômicas com os vizinhos conflagrados. Não houve corrida contra o dólar australiano, nem maciça fuga de capitais, de tal modo que o país manteve-se em crescimento expressivo. Ainda hoje, o déficit externo (déficit em conta corrente) fica perto dos 4% do Produto Interno Bruto, quando o padrão considerado prudente, ou financiável, é inferior a 3%. Comparando: o déficit em conta corrente do Brasil, nos doze meses encerrados em agosto último, chegou a 3% do PIB e continua caindo. Já foi de 5% (justamente em agosto do ano passado), mas no final de 2002 deve ficar em 2,8% do PIB. Ou seja, há um forte ajuste das contas externas, isso por causa do crescente superávit no comércio externo, da queda de algumas despesas, como em viagens internacionais, e da redução do endividamento internacional de governo, bancos e companhias locais, tudo consequência do real desvalorizado. Em relação ao ano passado, o déficit de 2002 será de quase 40% inferior. Ou seja, a necessidade de arrumar dólares para pagar as contas é cada vez menor. Considere-se ainda mais que, daqui até o final de 2003, os vencimentos da dívida externa do setor público (amortizações mais juros) alcançam pouco mais de US$ 22 bilhões. Ora, o Banco Central tem reservas de US$ 39 bilhões e a receber o financiamento de US$ 30 bilhões do FMI. Qual a possibilidade de os detentores de títulos externos brasileiros levarem um calote, mesmo considerando a hipótese extrema de o país não conseguir tomar emprestado um único centavo? Zero. Mas a cotação do dólar segue escalando aqui no Brasil, como se fosse sumir do mercado a moeda americana, e o C-Bond, o título brasileiro mais negociado no exterior, troca de mãos por metade de seu valor de face, como se fosse virar pó em semanas. Não somos um “país branco”, somos vulneráveis, assim como a Austrália se beneficia da invulnerabilidade. Alguém dirá: mas o Brasil tem uma dívida pública em elevação e um déficit nas contas públicas, incluindo o pagamento de juros, enquanto a Austrália mantém orçamentos equilibrados. Ocorre que as contas públicas brasileiras também estavam em processo de ajuste. Pioraram recentemente em consequência da escalada do dólar verificada desde abril, valorização ocorrida não porque os fundamentos estivessem piorando naquele momento, mas porque se desconfiou que pudessem vir a piorar em um próximo governo esquerdista. Eis, portanto, o que caracteriza um país não-branco. O pessoal sempre desconfia que pode aparecer um governo que estrague tudo. Como se fosse um ex-alcoólatra sempre na iminência de voltar a beber. O passado condena. Inversamente, para gozar de confiança (ou de invulnerabilidade) um país precisa ter exibido uma longa história de bom comportamento econômico. Outro dia desses, a pedido de Paulo Nassar, da Aberje, preparei uma apresentação sobre 50 anos de jornalismo econômico, para a cerimônia de premiação da entidade no Rio. Qual teria sido o noticiário principal da primeira semana de setembro de 1952? Acreditem: o ministro da Fazenda, Horácio Lafer, estava negociando um pacote com o FMI. Era de US$ 200 milhões, contra os US$ 30 bilhões de hoje, isso indicando que o país cresceu mas continuou o mesmo. O Brasil estava em crise externa, sem dólares para pagar suas contas. Estava devendo para as companhias de petróleo, por exemplo, havendo ameaça de falta de gasolina. A entrada e saída de dólares era rigidamente controlada pelo Banco do Brasil (não havia banco central). As importações estavam limitadas às essenciais, sempre com autorização governamental. De lá para cá, outros governos fizeram algumas bravatas com o FMI, como o de JK, e acabamos aplicando alguns calotes. Só na década de 80, duas moratórias (1982 e 97), mais a hiperinflação dos anos 80 e 90, com absoluto descontrole das contas públicas. Para admitir a verdade, apenas desde o final de 1998 o governo brasileiro vem conseguindo um superávit primário nas suas contas, isto é, vem fazendo economia nas despesas correntes para começar a pagar parte dos juros. E as leis que obrigam todo o setor público a gastar menos do que arrecada não têm quatro anos. Eis porque quando o PT apoiou o plebiscito que propunha a moratória da dívida externa e o não pagamento de juros da dívida interna, isso há apenas dois anos, muita gente alertou, a começar pelo ministro Pedro Malan, que isso só podia dar confusão se, no período eleitoral, o PT aparecesse como um competidor viável. E até dezembro passado, os documentos do PT falavam em romper com um regime subordinado ao FMI e ao capital financeiro internacional. Sim, esses documentos não valem mais, o partido está em claro processo de moderação, assinou o acordo com o FMI, está prometendo ortodoxia aos banqueiros. Mas um país não-branco está sob permanente desconfiança de recaída. Tem que matar um leão por dia, isso hoje. Com Lula e o PT, dois. Publicado em O Estado de S.Paulo, 29 de setembro de 2002

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