—Há mais do que moedas na guerra das moedas—
Vamos complicar essa história da guerra das moedas, tema da reunião do G20, que começa hoje em Seul.
É verdade que a China mantém sua moeda muito desvalorizada, ganhando assim uma vantagem contra todos os demais exportadores. Os produtos chineses, mais baratos, ocupam mercados mundo afora. Portanto, toda pressão sobre Beijing.
Por outro lado, a China, para sustentar sua máquina, tornou-se uma grande importadora, a segunda do mundo, atrás apenas do EUA. Importa cerca de US$ 1,5 trilhão por ano ? quase um PIB brasileiro. A China compra poucos produtos de consumo e muitos equipamentos, máquinas, petróleo, minérios e alimentos.
Com isso, alavanca muitos países, inclusive o Brasil, que exporta para lá grandes quantidades de minério de ferro e soja, principalmente. Mas vende também petróleo e outros alimentos e matérias primas, de modo que China já é o primeiro freguês brasileiro. De lá vieram bilhões de dólares que permitiram equilibrar as nossas contas externas e eliminar sua vulnerabilidade. E isso vale para muitos outros países que pegaram a onda chinesa.
Logo, a manutenção do crescimento da China, especialmente neste momento em que os EUA e os demais ricos estão patinando, é essencial para a saúde da economia global. Pode-se dizer que o mundo está voando com o motor chinês.
Muitos argumentam que a China pode desempenhar o mesmo papel com o aumento do consumo interno. Assim: a moeda seria valorizada, os salários e a renda interna subiriam, os chineses passariam a consumir mais e poupar menos, desviando-se parte da produção, que seria exportada, para o mercado local. Inclusive poderiam importar mais bens de consumo.
No papel, tudo bem. Na prática, será complicado promover tal mudança no modelo que afinal tem funcionado nos últimos 30 anos. E leva tempo, pois uma súbita elevação dos salários provocaria uma explosão de consumo, com risco de bolhas e explosão inflacionária.
Além disso ? mais complicação ? haveria uma alta nos preços internacionais dos produtos chineses, o que levaria inflação para o mundo todo.
E mais ainda: o modo de produção para exportação com mão de obra barata simplesmente se deslocaria da China para os vizinhos, como o Vietnã e tantos outros por ali.
Tudo considerado, os chineses têm razão quando dizem que precisam de tempo para valorizar a moeda e ir corrigindo o modelo. Só que eles pedem tanto tempo que significa fazer quase nada por uns bons anos.
Com isso, a bola volta para os Estado Unidos, cujo banco central, o Federal Reserve, Fed, está imprimindo 600 bilhões dólares para comprar títulos públicos que estão em poder dos bancos, na expectativa de que estes emprestem para as pessoas e empresas e façam a rodar a economia.
Com tanto dólar na praça, sobra para o mundo todo. O subproduto é a desvalorização da moeda americana, coisa que, aliás, ajuda as exportações dos EUA (ficam mais baratas) e encarece os produtos de todos que vendem para os EUA.
Ou seja, o mundo todo paga pela recuperação americana, menos a China, que atrela sua moeda ao dólar. E assim as duas maiores potências mantém suas moedas desvalorizadas, contra as demais, valorizadas.
Podemos complicar mais um pouco, para dizer que, afinal, a recuperação dos EUA é de interesse de todos. Trata-se de uma economia de US$ 14 trilhões, três vezes maior que a segunda, e que compra de quase todos os países. Em poucas palavras: o mundo não voltará a crescer de maneira segura sem os EUA.
Não haveria alternativa? Não. O governo Obama não pode aumentar seus gastos (o que também estimularia a atividade), porque o déficit já é elevado e porque os republicanos, agora maioria no Congresso, não aprovariam. Sobra a expansão da quantidade de dólares.
Pode até não funcionar bem, mas se os EUA não fizerem nada, a maior economia cai de novo na recessão e arrasta o mundo.
Eis o dilema: as duas maiores potências estão se ajustando à custa dos outros, mas é de interesse de todos que elas cresçam.
Enquanto isso, os países emergentes, com suas taxas de juros mais altas do que nos países ricos (EUA, Japão e Europa), continuam recebendo enxurradas de dólares. Todos os bancos centrais estão comprando o excesso, para impedir excessiva desvalorização das moedas locais, mas o resultado é uma indesejável acumulação de reservas.
Como o Brasil: o governo se endivida em reais valorizados, pagando juros elevados, para empilhar dólares desvalorizados.
Todos os emergentes estão nessa situação, mas a do Brasil é pior, pois nossos juros internos são muito mais elevados.
Assim, o que fazer em Seul, além de reclamar dos americanos e chineses?
Um novo acordo monetário está fora de questão. Estamos longe disso. Uma compreensão de todos os lados do problema, pode ser. E seria excelente, quase um milagre, que estabelecessem algumas diretrizes viáveis para continuar o debate.
Publicado em O Globo, 11 de novembro de 2011