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A verdade está nos gastos miúdos
Winston Churchill, quando primeiro-ministro da Inglaterra, em plena guerra, dizia que era muito mais fácil aprovar despesas enormes do que gastos miúdos. Por isso, em reuniões com seus ministros, colocava na frente as decisões sobre dinheiro grande.
Cem milhões de libras esterlinas para um novo submarino? Cinco minutos de explicação do almirante-chefe, gasto aprovado.
Trinta milhões para aviões? Dez minutos de conversa, aprovado.
Até que se chegava ao último item: despesa mensal com o chá do gabinete, mil libras esterlinas.
O quê? São xícaras de ouro por acaso? O país em esforço de guerra e o senhor primeiro-ministro quer beber mil libras por mês por conta do povo? Depois de 45 minutos de acalorados debates, os ministros suspendiam a verba do chá até que se apresentasse orçamento mais decente.
Essa história se repete em toda administração pública. Não se trata de picuinha, nem de mesquinharia, mas de noção do tamanho de despesa. Quem pode saber quanto custa um submarino ou um avião? Mesmo os técnicos se equivocam. Todos os dias há notícias dizendo que algo assim (um jato da Boeing, o novo carro de uma montadora, as obras para o Pan do Rio, uma hidrelétrica) saiu bem mais cara do que o projetado.
Além disso, como se pode saber se a Marinha precisa ou não de um submarino nuclear a US$ 1 bilhão? Ou se o trem-bala Rio-S.Paulo é mesmo necessário e útil ao preço de US$ 11 bilhões?
Mas todo mundo sabe que uma lata de lixo a 900 reais é espantosamente cara. E que uma de 10 reais cumpre exatamente a mesma função.
Eis por que os cartões corporativos do governo federal causam tanto impacto.
Membros do governo e mesmo muitos analistas das finanças públicas dizem que se está armando um escândalo com despesa miúda. É verdade que R$ 78 milhões ? o quanto os funcionários federais espetaram nos cartões no ano passado – são quase nada diante dos R$ 268 bilhões que o governo gastou com salários do pessoal, custeio e funcionamento da máquina e investimentos.
Se incluído o orçamento do INSS, a despesa do governo federal vai a R$ 455 bilhões. Acrescentando mais o pagamento de juros de dívida, o gasto total vai a R$ 513 bilhões. Os 78 milhões dos cartões, de fato, não passam de troco.
O comum dos mortais não sabe sequer imaginar o que representam 513 bilhões de reais. Equivalem, por exemplo, a 20 mil e quinhentos prêmios da megasena de R$ 20 milhões cada.
Mas a conta não é essa. Nem a moral da história. Trata-se simplesmente do uso do dinheiro público, em valores que qualquer pessoa sabe avaliar e em situações que fica evidente o abuso da despesa.
O pessoal entende que o governo pague a despesa do ministro que viaja a serviço. Se for feita uma pesquisa de opinião pública, uma expressiva maioria dos entrevistados dirá mesmo que a autoridade, especialmente em viagem ao exterior, deve hospedar-se em hotéis de primeira linha, para não fazer feio lá fora. Mas haverá escândalo se o ministro, no domingo, torrar dinheiro público comendo caviar e tomando vinho francês de mil dólares a garrafa.
Soa inteiramente falso quando um ministro justifica despesas de hotel durante o carnaval no Rio por ter tido um encontro oficial na sexta anterior. Ora, é o que diz todo mundo, que voltasse para casa na sexta mesmo. E faz todo o sentido.
Quando o presidente Lula comprou o Aerolula, respondeu acidamente às críticas de que se tratava de um gasto inútil e faraônico. Querem o quê?, que o presidente do Brasil se apresente no exterior com um avião caindo aos pedaços? ? dizia Lula, certamente com o apoio de muita gente.
Mas já não terá apoio se lotar o avião de parentes e amigos e levar todos para passar os feriados numa ilha da Marinha, tudo por conta dos impostos pagos pelos contribuintes, mesmo que essa farra custe infinitamente menos que o Aerolula.
De mesmo modo, o pessoal se incomoda quando fica sabendo que se consomem 400 quilos de camarões graúdos nos palácios presidenciais.
É nesses gastos que as pessoas comuns percebem os abusos. E aí já não importa que sejam pequenos. Trata-se simplesmente de dinheiro público utilizado para fins privados.
O que gera imensa suspeita. Se eles fazem essa lambança com cestos de lixo, mesas de sinuca, tapiocas, o que não devem ter feito com as coisas grandes?
Como se chegou a isso?
O principal ponto é a falta de regras claras e transparentes tanto para o servidor que vai fazer o gasto quanto para o contribuinte que o financia. Isso deve valer também para os gastos com o presidente da República. Ao contrário do que acham muitos ministros, que essas despesas devem ser secretas, por supostas razões de segurança, devem ser as mais regulamentadas.
Se o governo (o povo) vai pagar os ternos do presidente e os vestidos da primeira dama, esse custo deve ser explicitado. Exagero? Bisbilhotice?
Ninguém pretende que a primeira dama encomende vestidos simples na costureira de um bairro de São Bernardo, com todo respeito pelas profissionais de bairro. Mas o que se dirá se ela encomendar um traje de noite ao estilista das estrelas de Nova York, espetando a conta de 50 mil dólares no orçamento do consulado brasileiro?
Também não é ameaça nenhuma à segurança do presidente e seus familiares se todo mundo souber quanto se gasta com esse serviço. Não é preciso dizer que os seguranças que trabalham em São Bernardo ficam na casa de número tal, na rua tal, dando expediente das 9 às 17hs. Mas é evidente que se pode saber quanto se gasta lá.
E mais: deve ter piscina na casa? Deve ter academia de ginástica? Ou os policiais devem ser receber um vale-academia? O governo deve pagar a mesa de sinuca dos funcionários?
Pode parecer bobagem, mas a falta de regulamentação leva aos abusos que se tem visto.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2008