. O Lula do Waldorf Astoria No magnífico salão de baile do Waldorf Astoria, com seus mármores e lustres de cristal, Lula foi pró-mercado quando recebeu para almoço um grupo de executivos internacionais, na semana passada. Disse com todas as letras que o Brasil quer investimento estrangeiro, ao qual oferece oportunidades e garantias. Foi mais do que isso, porém. Desempenhou o papel que mais agrada à comunidade econômica internacional: o de um líder da esquerda, de expressão internacional, que veio para combinar o social e o mercado. No Chile, o presidente socialista Ricardo Lagos, já faz isso há algum tempo. Mas o Chile, com todo o respeito, tem um Produto Interno Bruto de US$ 70 bilhões e uma população de 15 milhões, espremida ali no canto da América do Sul. Exporta cobre, frutas, peixes e vinhos – alguns dos melhores vinhos das Américas, é verdade, mas continuam sendo comodities. Já o Brasil está entre as maiores economias e as maiores democracias de massa do mundo. O PIB é sete vezes o do Chile, a população, 11 vezes (sinal de que os chilenos têm renda per capita maior, mas só a parte mais rica do Brasil é um mercado muitas vezes maior). O Brasil sustenta óbvia posição dominante na América Latina e faz presença no grupo dos países emergentes. Eis aí, um presidente brasileiro bem sucedido nessa combinação de mercado com o social – um governo pró-negócios privados e ao mesmo tempo popular pelos seus programas sociais – logo se transformaria numa importante liderança internacional. E seu governo seria um modelo a ser aplicado por toda parte. Para falar a verdade, Lula, nesse papel, seria simplesmente o salvador do que foi feito nas décadas de 80 e 90, as reformas pró-mercado, acrescentando a elas o caráter social que as tornaria populares e vencedoras de eleições. A questão é saber se o personagem concorda com esse papel. Ou, como Lula se vê na cena internacional? Certamente ele se vê como liderança, não como simples participante ou coadjuvante. Mas se vê como liderança dos países do Sul (emergentes, em desenvolvimento, pobres). Assim como, no Brasil, se vê como líder dos pobres e trabalhadores. Nesse papel, Lula é de esquerda e bem diferente daquele do Waldorf Astoria. Foi o papel que desempenhou há apenas duas semanas nos eventos em torno da Conferência da ONU para Cooperação e Desenvolvimento, realizada em São Paulo. Nessa ocasião, Lula recuperou o velho discurso esquerdista: as misérias do mundo seriam consequência da ordem imposta pelas organizações internacionais (leia-se FMI e, de certo modo, a Organização Mundial do Comércio), a serviço dos países ricos. O presidente desfilou números sobre a pobreza do mundo, afirmou que ela aumentou nos anos das reformas e manifestou seu propósito de lutar por mudanças que distribuam renda para os mais pobres, dando-lhe também mais peso e poder político. Uma nova geografia. Mas se esse é o papel de Lula no cenário internacional, então era outra pessoa que estava no Waldorf Astoria — justamente a pessoa que mantém um acordo com o FMI e o cumpre de modo exemplar, empenhado em uma política econômica clássica com o objetivo de reduzir o endividamento público, com inflação baixa. Em resumo, quando aparece nos eventos internacionais mais políticos e diplomáticos, na órbita da dupla Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, e Marco Aurélio Garcia, assessor especial, Lula pende para a esquerda e para a nova geografia. Quando aparece nos eventos mais econômicos, como a reunião com investidores, em Nova York, na órbita dos ministros Antonio Palocci (Fazenda), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Roberto Rodrigues (Economia), Lula assume o papel esperado pela comunidade de investidores, do líder que vai combinar o mercado com os programas sociais de redução da pobreza (e, pois, da resistência ao mercado). Por isso os investidores o aplaudiram de pé. Gostaram do que ouviram. Mas não saíram disputando oportunidades de investimento no Brasil. Resta uma desconfiança: qual seria o papel verdadeiro? Alguns analistas, assessores e amigos do presidente dizem que a coisa é mais complexa: o verdadeiro papel seria a composição daqueles dois papéis contraditórios. Ou seja, dizem que Lula só pode assinar com o FMI se mantiver uma retórica diplomática de esquerda. Assim como, internamente, só pode apoiar o agronegócio (privado e globalizado) se der a outra mão para o MST. O problema é que isso só funciona enquanto os dois lados não percebem o truque. Ou enquanto cada lado, percebendo o truque, acha que pode ganhar a disputa e levar o presidente para seu terreno. E essa é uma disputa permanente no governo Lula. Se chegar a algum desfecho, com a vitória clara de um lado, então haverá uma reforma ministerial e muita gente desembarcará do governo. E pelos atos do presidente, pela forma firme como toca a política econômica, prece que há um favorito nessa disputa. O risco de não haver desfecho, com o presidente tentando usar as duas mãos, é, com o tempo, desagradar a todos e cair numa paralisia administrativa. Publicado em O Estado de S.Paulo, 28/06/2004
O TERCEIRO PAPEL DE LULA
- Post published:9 de abril de 2007
- Post category:Coluna publicada em O Globo
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