O que é de esquerda hoje?

. Esquerda, direita, tudo fora de lugar O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a esquerda no congresso da Internacional Socialista, semana passada, em São Paulo, desancou o protecionismo comercial dos ricos e deu sinais de que busca um contato mais estreito com o Partido Democrata nos Estados Unidos. Não bate. Protecionismo sempre esteve associado a governos de esquerda ligados a sindicatos de trabalhadores. Estes criticam o livre comércio, por temor de que seus empregos sejam exportados. É o caso, por exemplo, da AFL-CIO, a maior central sindical americana, dirigida por amigos de Lula, e que não quer saber da Área de Livre Comércio das Américas. A central é tradicionalmente ligada ao Partido Democrata, que reúne alguns dos mais duros inimigos do livre comércio, como o deputado Richard Gephardt, líder da agremiação durante muitos anos e hoje disputando a candidatura à presidência do país. O site de campanha relaciona ações importantes de Gephardt, entre as quais encontram-se: a inclusão de cláusulas trabalhistas e ambientais em acordos comerciais dos EUA; e proteção às famílias rurais, aquelas que tocam suas fazendas. As duas medidas são protecionistas. Pela primeira, por exemplo, os EUA podem exigir que os países interessados em acordos comerciais paguem salários e tenham legislação ambiental conforme os padrões americanos, o que é impossível para os países em desenvolvimento. Para o governo brasileiro, trata-se de clara barreira não alfandegária, posição defendida no tempo de FHC e agora. A segunda ação de que Gephardt se orgulha é uma referência aos subsídios pagos aos produtores rurais, outro alvo dos ataques de Lula na reunião da Internacional Socialista. Livre comércio e eliminação de subsídios sempre foi coisa de liberais. Para estes, é preciso deixar que o mercado funcione sem distorções, dentro e fora dos países. Lula, portanto, alinhou-se ao pensamento liberal justamente quando defendia a tradição de esquerda na reunião socialista. Mas também se pode dizer que o presidente George Bush, do Partido Republicano, teoricamente liberal e conservador, tem sido bastante protecionista, além de ter apoiado a legislação que aumentou os subsídios rurais. Como explicar tais contradições? Simples: trata-se de realismo político ou econômico. Oportunismo, diriam alguns. Bush é pelo livre comércio mundial, mas, sabe como é, tem uns votinhos importantes na Flórida (que não quer competir com a laranja brasileira) ou na Pensilvânia (cujas siderúrgicas temem o aço brasileiro) ou em Ohio (com seus fazendeiros). Lula já manifestou compreensão pelo protecionismo agrícola europeu e, para dizer a verdade, o pensamento econômico tradicional do PT defende a concessão de estímulos, subsídios e proteção a setores nacionais considerados estratégicos. O problema é que o governo brasileiro simplesmente não tem dinheiro para bancar tais apoios às empresas locais. Os países ricos (EUA, Japão e União Européia) gastam quase US$ 1 bilhão por dia só com subsídios agrícolas. Onde vamos arranjar esse dinheirão? Acresce que a agricultura brasileira, à custa de muito esforço privado e algum apoio público, tornou-se muita competitiva em termos internacionais. E como o país precisa aumentar suas exportações, o raciocínio realista se fecha: o presidente brasileiro, qualquer que seja sua orientação, é pelo livre comércio agrícola. Ou seja, essa Internacional Socialista não passa de um palanque, especialmente para os partidos sócios que não estão no poder. Ou alguém imagina que se o governo francês cair de novo nas mãos do Partido Socialista, membro da Internacional e para o qual Lula já fez campanha, vai abandonar o protecionismo para apoiar o governo do companheiro brasileiro? Ou, inversamente, que Lula vai abandonar o discurso anti-subsídio em respeito aos companheiros franceses? O PT não pertence à Internacional, entre outras coisas porque exigia uma crítica da organização à Terceira Via de Tony Blair, uma das estrelas do grupo. Isso quando o PT era oposição. No governo, a política econômica de Lula não é substancialmente diferente daquela de Blair, inclusive no que se refere a símbolos. Blair, como primeiro ato de seu governo, assinou lei concedendo autonomia ao Banco Central. Lula não assinou lei, mas concedeu a mesma autonomia prática ao BC brasileiro, que decide sobre taxas de juros (e as aumentou!) com ampla independência. Lá na Inglaterra, todo mundo está achando muito boa a política econômica brasileira. Paciência, são as exigências da realidade, argumentaram petistas e socialistas de diversos países para justificar os caminhos do governo Lula, cuja eleição havia despertado entusiasmo em todo o mundo de esquerda. Enfim, um presidente operário, popular. Hoje, já não há tanto animação. A esquerda fincada em suas raízes, aqui e lá fora, tem dificuldade para passar do discurso ideológico às necessidades práticas. O próprio Lula passa pelas mesmas dificuldades. Ele entrou de cara no governo, curva-se ao peso da realidade, mas claramente se irrita quando é acusado de abandonar a esquerda. Sai então no improviso e assegura que, por exemplo, a reforma da Previdência é de esquerda, que sua política agrícola externa também e que ele continua contra a globalização. Mas como já não se sabe bem onde está a esquerda, onde a direita, e como os líderes mundiais vão trocando de lugar na maior sem cerimônia, a coisa sempre termina em confusão retórica. Se ficar apenas nisso e não atrapalhar a função de governo, não tem importância. Publicado em O Estado de S.Paulo, 03/novembro/2003

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