O LADO POSITIVO DA CRISE POLÍTICA

. Razões de Estado de quem?   A primeira impressão é ruim. Parece tudo dominado pela corrupção e pelo uso da máquina pública para fins pessoais. Olhando mais de perto, porém, encontra-se uma leitura positiva tanto para a política quanto para a economia. Não é trivial o que acontece no Senado. Dois caciques da política nacional, um presidente do Senado, outro, ex-presidente, que há décadas dominam a cena em seus estados, estão na alça da mira. Os casos são diferentes, mas a base é a mesma. Ambos foram apanhados por entenderem que, tendo poder político obtido pelo voto, poderiam usar a coisa pública como se fosse deles. O senador Antonio Carlos Magalhães alavancou sua carreira política no regime militar. Mas sobreviveu bem à democracia, conquistou mandatos no voto, para si e para seus amigos. Exerce poder político com naturalidade. Tanto que não achou nada demais em ter acesso a uma lista de votação que deveria ter permanecido secreta. Qual o problema? – parecia ele dizer no seu depoimento na Comissão de Ética do Senado. Não era qualquer um que acessava o segredo, mas o presidente do Senado, ACM, ministro e governador da Bahia duas vezes, como fez questão de ressaltar na sua exposição. Alegou “razão de Estado” para mentir, para dizer da tribuna do Senado, dedo em riste, voz alterada, que jamais tinha visto a tal lista. Ele mesmo definiu qual seria essa “razão de Estado” – a de não levantar dúvidas sobre a votação que havia cassado o mandato de senador de Luis Estêvão. O processo de cassação de um senador, num caso de corrupção, certamente não é uma banalidade. Mas digamos que surgissem dúvidas sobre a votação. Qual o problema em repeti-la? E se o ex-senador recuperasse seu mandato na Justiça – o outro poder da República – isso certamente seria embaraçoso para o Senado, mas em que ameaçaria o Estado? Um governante pode alegar “razão de Estado” diante de circunstâncias que ameaçam a segurança nacional. Por exemplo: se o governo brasileiro resolver invadir a Argentina para capturar o ministro Domingo Cavallo e se algum jornal local descobrir isso, o governo pode invocar razão de Estado para impor a censura e proibir a divulgação da notícia. É óbvio: publicada, comprometeria a ação militar, colocaria em risco vidas de brasileiros envolvidos na operação. Mas a cassação de Luiz Estêvão? Não ameaçava nem o Estado da Bahia, nem o DF. Na verdade, a “razão de Estado” alegada por ACM é do mesmo tipo daquela invocada pelos governantes do regime militar. Quando diziam que os parlamentares da oposição ameaçavam a segurança nacional, e por isso deveriam ser cassados, na verdade estavam dizendo que a oposição ameaçava o regime dos militares e dos seus amigos. A cassação de Luiz Estêvão, por mais correta que tenha sido, coincidia com o interesse do grupo político de ACM. Serviu para aplicar um golpe no PMDB de Jader Barbalho. Eis aí. Como antes, também aqui se confundem interesses pessoais e de grupos com os chamados interesses nacionais. Daí a dar uma olhada na lista secreta de votação e comentar os votos, assim como se examina o cardápio e discute o melhor prato, foi um passo natural. É como se o Senado, o Prodasen, fosse tudo dele. Aliás, os funcionários do Prodasen agiram exatamente com esse espírito. Não vacilaram em seguir o que entenderam como uma ordem, sem considerar que há ordens que não devem ser cumpridas não propriamente por razão de Estado, mas por motivos éticos, legais, funcionais. Ninguém pode alegar cumprimento de ordem para fazer algo ilegal ou ilegítimo. Mas os funcionários em questão são gente séria, competente, de carreira responsável. Como puderam ignorar tão escandalosamente a lei e a ética? A resposta está no ambiente, na cultura política, na prática brasiliense pela qual as autoridades podem o que os outros não podem. O que é o carteiraço? O sujeito é pego em excesso de velocidade, em estacionamento proibido, e saca a carteira de autoridade. Já viram a carteira de um assessor de gabinete de ministro? Tem o brasão da República em metal, a palavra “Autoridade” em letras fortes. Para que o assessor precisaria disso se não para fazer algo que os comuns não podem? Na verdade, os funcionários do Prodasen talvez não tivessem alternativa. O ambiente os levou a interpretar aquilo como uma ordem final de ACM. Mas agora os demais funcionários têm alternativa. É a leitura positiva. Agora, no Senado, em Brasília, todo mundo sabe que não deve e não pode cumprir uma ordem duvidosa do presidente da Casa. Mais importante ainda, as autoridades sabem que podem ficar na alça da mira. Jader Barbalho é diferente de ACM. Ao contrário do cacique baiano, começou sua carreira combatendo o regime militar lá no Pará. Cavou seu lugar na base do voto. Mas o modo de exercer o poder tem a mesma base. Quando se defendeu das acusações de estar envolvido na manipulação do dinheiro da Sudam, lá pelas tantas ele explicou que o modelo de distribuição de incentivos fiscais levava necessariamente ao pagamento de pedágios e ao uso de notas frias. E que muita gente fazia isso. Parece que é assim mesmo. Mas o que fez um político que passou a carreira defendendo os incentivos fiscais para sua região, que, empresário, usou incentivos e que tinha poderes para nomear superintendentes da Sudam? Simplesmente jogou o jogo? É a mesma idéia, de usar a coisa pública, no caso, o dinheiro público para atender interesses localizados. Também aqui há uma leitura positiva. Todo mundo agora sabe que os incentivos para desenvolvimento das regiões Nordeste e Amazônia foram uma grossa distribuição de dinheiro público para os que tinham algum acesso ao poder político, seja obtendo esse acesso no voto ou no dinheiro. Sim, há empreendimentos corretos. A CPI da Sudene-Finor, cuja conclusão passou meio desapercebida, encontrou indústrias gerando empregos e renda com o dinheiro recebido de graça. Mas verificou que quase todos os empreendimentos agropecuários viraram pó e que a maior parte dos projetos industriais não cumpriu os objetivos. Pode procurar que vai encontrar políticos regionais envolvidos na distribuição. Há pouco tempo, quando se decretou a morte da Sudam, políticos do Nordeste conseguiram salvar a Sudene. Era como se ACM vencesse Jader. Mas agora vai-se a Sudene também. É demais esperar a eliminação dos incentivos. Vão inventar alguma coisa no lugar, mas pelo menos será mais modesta e menos suscetível a carteiraços. É difícil mudar uma cultura. Se fosse apenas um problema de roubalheira de dinheiro público, seria mais fácil. O problema é que há muitas razões de Estado, direitos adquiridos e interesses legítimos: o Judiciário que aumenta seus vencimentos sem previsão orçamentária; empresários que só investem se receberem dinheiro do governo; aposentarias especiais garantidas na Constituição, e por aí vai. É uma longa história. Mas colocar dois caciques na alça mira foi um avanço e tanto. (O Estado de S.Paulo 30/04/2001)

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