O JEITINHO BRASILEIRO . . . ERRADO

. O diabo dos detalhes Tome-se o caso da Parmalat: os italianos estão salvando a empresa – e seus empregos – enquanto colocam na cadeia os fraudadores. Aqui no Brasil, a história vai na direção contrária e rapidamente. Estamos perto de destruir a empresa e não punir ninguém. Não se pode dizer que o Estado italiano seja um primor de eficiência. Sua lenta burocracia é conhecida na Europa. Ainda assim, detectado o escândalo, o governo Berlusconi pilotou um conjunto de medidas administrativas e legais (inclusive com legislação aprovada às pressas no Parlamento) para garantir o funcionamento da empresa – as fábricas, as redes de distribuição, os empregos. Antes de mais nada, aprovada a legislação necessária, foi nomeado um interventor, Enrico Bondi, um executivo profissional, homem acima de qualquer suspeita e conhecido por sua capacidade de tirar empresas do buraco. Com gente de confiança no comando, a companhia ganhou isenção e/ou adiamento no pagamento de impostos. Enquanto a polícia e os promotores avançavam nas investigações, com o apoio dos novos administradores da Parmalat, estes tratavam de manter a multinacional em operação. O último lance saiu no final da semana passada: Enrico Bondi conseguiu com um consórcio de bancos um empréstimo de 105,8 milhões de euros, que garante capital de giro para um ano. Já o ex-controlador da empresa, Calisto Tanzi, continua preso, na companhia de familiares e ex-executivos. Nos Estados Unidos, onde a Parmalat é, obviamente, bem menor, caminha-se para soluções regionais. Companhias locais se preparam para adquirir ativos da multinacional. A iniciativa é basicamente privada, mas com apoio dos governos e da Justiça. No Brasil, a Parmalat também não tem o peso que tinha na Itália. Mas é uma empresa mais importante do que nos Estados Unidos. E qual foi o último lance por aqui? Uma ridícula assembléia de acionistas que terminou sem que se soubesse quem manda na empresa. Um juiz destituiu a diretoria e nomeou um interventor; outro disse que a nomeação estava equivocada, mas não reempossou a antiga diretoria; um terceiro disse que a intervenção estava ok – e assim segue a ciranda. Se com um comando de primeiro nível já seria difícil salvar a companhia, imaginem sem liderança. E olhem que, até aqui ao menos, parece que a empresa brasileira, a operacional, essa que se deve salvar, não participava das falcatruas italianas. O governo federal demorou para entrar no caso e, quando entrou, o fez timidamente e sem qualquer coordenação. Poderia ter dito, à maneira liberal-americana: é uma empresa privada, eles – companhia, fornecedores, clientes e trabalhadores – que se virem. Não fez assim. E também não fez assado. Um ministro disse que a preocupação era apoiar os produtores que vendiam leite à Parmalat. Arranjou-se algum financiamento público para isso. Mas e outros envolvidos? Enquanto isso, bancos oficiais corriam para sequestrar ativos da companhia. Até agora, não se sabe quem é o home do governo encarregado de pilotar o caso Parmalat, cujas fábricas vão se decompondo. Empregos se perdem, como notam líderes sindicais desanimados com a inação de um governo que consideram aliado. É um caso emblemático. Começa que se fosse aplicada a atual lei de falências, a empresa estaria fechada, com seus credores fazendo fila para receber o que sobrasse depois da Receita apanhar o seu. O projeto de lei de falências que tramita no Congresso prevê modos de salvar a empresa. Mas se o projeto está lá há mais de um década, por que correr agora, não é mesmo?
Diversos analistas têm apontado um aspecto importante do risco Brasil, a incerteza jurisdicional. Pois têm aqui um exemplo acabado: no momento em que a empresa mais precisava de comando, uma disputa nos tribunais leva à acefalia. Culpa dos juízes? De alguns, talvez. Mas o problema de fundo, claro, é que está tudo arranjado para atrapalhar os negócios, nos bons e nos maus momentos. E não é coisa de superestrutura. O diabo está nos detalhes. O presidente Lula passou a semana passada telefonando para líderes dos países ricos, pedindo apoio para mudar as regras de contabilidade do Fundo Monetário Internacional. Em resumo, trata-se de abrir espaço para mais investimentos do governo e suas estatais, hoje limitados pelo modo de se contar o superávit primário. É uma boa causa e, sobretudo, dá boa imprensa, o que vem a calhar no ambiente da crise Waldomiro. Mas mesmo que a pedida fosse aceita com rapidez, ainda assim o dinheiro que o governo teria para investir mal atenderia 30% das necessidades nacionais. Isso porque o governo, nos três níveis, gasta cada vez mais com custeio, folha salarial e aposentadorias, sobrando pouco para investir, com ou sem regras do FMI. Assim, embora tenha dado menos manchetes, foi muito mais importante o projeto de lei enviado por Lula ao Congresso, mudando pontos da legislação do financiamento imobiliário. Não tem dinheiro do governo. Apenas criam-se figuras legais que dão mais garantias aos compradores, vendedores e financiadores. Quer um exemplo? Eis aqui: hoje, quando um comprador entra na justiça para discutir os juros que incidem sobre sua dívida, não é raro o juiz determinar a supensão do pagamento das prestações enquanto corre o processo. Mas suspende tudo: a prestação, os juros, eventuais taxas. Em muitos casos, o devedor deixa de pagar até o condomínio. O projeto de lei enviado ao Congresso determina que, nesses casos, só se poderá suspender o objeto da controvérsia, a variação da taxa de juros, não a prestação básca, esta obviamente não controversa. Simples, não? Óbvio. Mas precisa de lei. Assim como se precisa de uma lei maior dizendo que nos contratos vale o escrito. Outro dia, numa palestra com empresários de Belo Horizonte, o dono de uma construtora (apartamentos para classe média) contou que a justiça já alterara três vezes o índice de correção dos contratos, sempre para o menor.     Eis aí a tal agenda microeconômica – a que abre espaço para negócios e permite o salvamento em casos como o da Parmalat. O governo pode pensar grande e o presidente faz bem em conversar com os manda-chuvas, mas o que precisa mesmo é operar o micro. E vai mal nisso Publicado em O Estado de S. Paulo, 08/03/2004

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