O GOVERNO LULA JÁ COMEÇOU

. No batente O melhor momento para um político é aquele entre a eleição vitoriosa e a posse, em especial quando se trata de um cargo executivo, prefeito, governador ou presidente. Em estado de graça, a pessoa saboreia a aprovação popular e ainda não se envolveu com o serviço pesado e frequentemente aborrecido da administração. Como disse o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva: “tenho de me beliscar de manhã”. As circunstâncias, porém, abreviam o período de graça de Lula. De um lado, porque há muita coisa por fazer no Brasil. De outro, porque ele foi eleito em meio a uma enorme crise de confiança no mercado que, se não for debelada, comprometerá todo o governo. Portanto, o serviço já começou. Alguns dirão que em qualquer país há sempre muito por fazer, de modo que não se justificaria a atual ansiedade em relação ao novo governo. Mas nisso o Brasil é diferente. Na política, a própria eleição de Lula mostra que as instituições estão solidamente assentadas. Na economia, entretanto, há importantes fundamentos a lançar. Para citar apenas dois: o sistema tributário é muito ruim, a Previdência acumula déficits. Assim, enquanto nos países estáveis é preciso apenas ajustar aqui e ali, no Brasil ainda são necessárias amplas reformas, quase-revolucionárias, digamos. Como, aliás, diz o próprio presidente eleito. De todo modo, reformas desse tipo são para o médio e longo prazo. Pode haver urgência, mas não emergência. Ou seja, por esse lado haveria espaço para Lula curtir seu melhor momento. Mas a crise de confiança ameaça a economia todos os dias. É preciso agir de imediato nas expectativas. E, finalmente, o governo de 2003 começa agora, na votação do orçamento da União. Processo no qual, aliás, já aparecem as contradições a desafiar a capacidade de negociação do futuro governo. Tome-se o caso da alíquota do imposto de renda das pessoas físicas. A mordida máxima cai de 27,5% para 25% em janeiro próximo. O PT votou contra os 27,5% por duas vezes. Mas esses 2,5% adicionais, cobrados sobre salários acima de R$ 2.225 mensais, valem R$ 1,7 bilhão, dinheiro precioso para quem está procurando fundos para financiar o programa Fome Zero e mais o salário mínimo de R$ 240 mensais. Assim, ou se adiam programa e mínimo, ou se volta aos 27,5%, ou se encontra outra fonte de receita. O deputado Ricardo Berzoini (PT-SP) sugere, por exemplo, que se elimine uma vantagem fiscal de empresas, cuja discussão técnica não cabe aqui. Importa saber que renderia uns R$ 3,5 bilhões, na conta dos técnicos petistas, portanto até mais eficiente que os 2,5% do IR pessoa física. Mas é evidente que aumenta a carga tributária das empresas. E uma das promessas da campanha não era exatamente a de desonerar a produção? Eis aí, escolhas a fazer, adiamentos a pedir. Normal, é o que se faz numa administração pública todos os dias. O problema é fazer isso quando se prometeu muito a muita gente. Outro caso, o programa Fome Zero, lançado por Lula como prioridade a ser implantada desde o primeiro dia de governo. Parecia uma esmagadora unanimidade. Não é. Mais exatamente, a unanimidade está na proposta, combater a fome, não no programa, que pretende distribuir cupons de alimentação (que dão direito a comprar certos alimentos em determinados locais). Surgiram divergências dentro do próprio PT. O incansável senador Eduardo Suplicy, por exemplo, está convencido da superioridade dos programas de bolsa escola e renda mínima, que dão dinheiro vivo, cabendo à família decidir onde e como gastar. E tendo contrapartidas, como o de manter as crianças na escola. É verdade que esta é uma divergência mais fácil de resolver. Trata-se de escolher entre um e outro programa de distribuição de benefícios. Outras escolhas, entretanto, implicam em dar benefício a um e, digamos, malefício a outro. Aliviar o IR das pessoas e aumentar o das empresas. Aumentar o mínimo e cortar investimentos públicos. Ou inversamente. Por aí vai. E tem mais a definição da equipe econômica, passo crucial no esforço de dissolver a crise de confiança nos mercados. É verdade que, para todas as tarefas, Lula parte de uma enorme vantagem, seus 53,7 milhões de votos. Qualquer partido, qualquer liderança pensará duas vezes antes de se opor a um presidente com tal aprovação popular. Ninguém quer aparecer no papel de atrapalhar um presidente no qual se depositaram tantas esperanças. Todo governante, quando começa a decidir, começa a criar descontentes. Mas a margem de manobra é ampla quando se parte de uma enorme maioria popular. Em qualquer caso, porém, o governo Lula já começou. Muitos assuntos aguardam decisão para breve. Publicado em O Estado de S.Paulo, 04/11/2002

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