O COMBATE À POBREZA

. Agendas equivocadas. O combate à pobreza ocupa lugar de destaque na agenda internacional desde o ano de 2000, quando, no âmbito das Nações Unidas, fixaram-se os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. A meta mais ambiciosa é reduzir a pobreza global à metade até 2015. Neste ano de 2005, em setembro, a ONU reunirá uma cúpula especial para avaliar o andamento dos Objetivos, que, parece, está aquém do necessário. Ou seja, o tema continua prioritário na agenda. Esse foi um dos motivos, talvez o principal, pelo qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tão bem recebido no cenário mundial. Todo mundo conhecia sua biografia. Ali estava um homem vindo da pobreza, e que dela saíra primeiro ascendendo à condição de operário qualificado, depois como líder sindical de expressão internacional e, finalmente, fundador de um partido que chegava ao poder federal. Esse o presidente de um país que se inclui entre as 15 maiores economias do mundo, tendo, pois, capacidade de influência. Lula era o personagem novo, talhado para dar enorme contribuição no combate á pobreza. Acrescente-se aí que o presidente, líder da esquerda, encaixou uma política econômica clássica, sem mágicas ou heterodoxias, como ele próprio gostava de dizer, e, pronto, o mundo em desenvolvimento acaba de gerar uma liderança perfeita para o momento. O sucesso nacional repetia-se em escala internacional. Eis porque no ano passado, por ocasião da Assembléia Geral da ONU, Lula conseguiu reunir mais de 100 chefes de estado, muitos da primeira divisão, para ouvir seus planos e propostas sobre o combate à pobreza. Mas o que saiu ou pode sair desse ambiente tão favorável? Pouca coisa, é a conclusão. O encanto pode estar quebrando. Há, na posição de Lula, um equívoco de entendimento e, pois, de agenda. O presidente acredita que a pobreza tem aumentado sistematicamente no Brasil porque governos formados pelas elites nunca se preocuparam de fato com esse problema. Eis o que ele disse em fevereiro de 2003, em um dos vários discursos para o lançamento do Fome Zero: ?E entra Governo, sai Governo, entra deputado, sai deputado, entra senador, sai senador … entram governantes e mais governantes, ministros e mais ministros e o resultado continua o mesmo: o povo continua mais pobre do que antes?. Ora, não é verdade, conforme se vê em documentos do próprio governo federal. Em outubro de 2004, a Presidência da República e o Sistema das Nações Unidas no Brasil divulgaram o Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio, preparado com apoio do Ipea e do IBGE. O documento mostra que o Brasil, ao contrário do resultado mundial, está muito perto de cumprir, antes do tempo, as metas de desenvolvimento. Diz o Relatório: ?O Brasil está prestes a atingir primeira meta dos Objetivos, que prevê reduzir pela metade a proporção de pessoas em situação de extrema pobreza ? ou seja, vivendo com menos de um dólar por dia, ajustado pela paridade do poder de compra. Em 1990, ano de referência para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, 8,8% dos brasileiros estavam abaixo dessa faixa; em 2000, eram 4,7%. Para o Brasil cumprir a meta, essa porcentagem deve cair para 4,4% até 2015?. O documento ressalva: ?Seja qual for o ?termômetro? usado, o número absoluto de pessoas na extrema pobreza no Brasil ainda é muito alto, a ponto de superar o total da população de muitos países. Os muito pobres podem ser 8 milhões ou 17 milhões, dependendo de onde se traça a linha de indigência?. Mesmo que sejam 17 milhões, ainda é muito abaixo dos números tomados como referência pelo presidente Lula, que ora fala em 43 milhões, ora em 45 milhões de pessoas ?vivendo na pobreza?, ?passando fome? e ?sem comer as proteínas e calorias necessárias?. O presidente mistura assim fome e pobreza, situações que devem ser tratadas separadamente. Há pessoas na pobreza que não passam fome, por diversas razões, desde a existência de redes de proteção ? incluindo as bolsas distribuídas em diversos níveis de governo ? até o fato de a comida no Brasil ter ficado muito barata, conforme o artigo de Rolf Kuntz, nesta mesma página, no último dia 23. Foi também o que mostrou a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE. Em um universo de 95,5 milhões de pessoas de 20 anos ou mais, diz a pesquisa, foram encontradas apenas 3,8% (ou 3,6 milhões) com déficit de peso. Nem há tantos pobres, nem tantos famintos como acredita o presidente. Também não é verdade que governos anteriores não fizeram nada. A situação tem melhorado há décadas, como se conclui da comparação com pesquisas anteriores. Em 1991, por exemplo, a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição encontrou no país 13 milhões de pessoas, então 15,9% da população adulta, com déficit de peso. Ou seja, o número de pessoas abaixo do peso caiu espetacularmente em pouco mais de uma década, a ponto de a última POF indicar que a população brasileira não está mais exposta aos riscos da desnutrição, isto é, à fome. Na verdade, no mundo, a fome (a situação das pessoas que lutam para arrumar a comida do dia e assim sobreviver mais 24 horas) é essencialmente uma questão de países africanos. No resto do mundo, essa pobreza aguda tem sido superada, sendo o problema maior a distribuição de renda ou a pobreza relativa. A questão é como embarcar milhões de pessoas no extraordinário processo de crescimento econômico registrado nas últimas décadas. Por isso, o Fome Zero acabou pouco a pouco abandonado por aqui e as propostas internacionais de Lula, como taxas sobre transações financeiras ou comércio de armas para formar um fundo de combate à fome, caíram no vazio. O problema real, incluir no crescimento, é mais complexo e exige políticas mais completas. Há grande interesse em duas propostas que estão por sair. Uma está em um monumental estudo do economista Jeffrey Sachs, patrocinado pelas Nações Unidas e prometido pêra janeiro agora, que deve apresentar sugestões para todas as áreas, de educação e saúde a tecnologia, até medidas para apoiar a exportação dos países mais pobres. Outro documento aguardado é do primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, específico para a África. Lula terá pouco a contribuir nesse debate, se continuar com essa visão de que tudo só piora até que surja o governo do PT. Publicado em O Estado de S.Paulo, 03/janeiro/ 2005

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