O CASO DO JORNALISTA AMERICANO

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Espírito autoritário O presidente do PT, José Genoino, disse que o que estava em jogo “não é a liberdade de imprensa, mas a atitude caluniosa e maldosa do jornalista” Larry Rhoter, do New York Times. Pois é exatamente o contrário. O que o jornalista escreveu não interessa mais do ponto de vista político, embora tenha sido doloroso para o presidente Lula. O que conta agora é o modo como o governo lida com a liberdade de imprensa (ou, como lida com as críticas) e o seu processo de tomada de decisões. Vamos supor que o presidente fosse Paulo Maluf e o jornalista tivesse escrito uma reportagem sobre contas na Suíça. O “presidente” se diria ofendido, por si, pela sua família e pela pátria, e expulsaria o jornalista. Podemos supor ainda que o presidente fosse, de novo, José Sarney e um jornalista francês escrevesse que os livros do chefe de estado brasileiro eram lixo literário. Sarney, ofendido, cassaria o registro profissional do crítico. Podem parecer situações diferentes, mas são exatamente idênticas. O que importa não é o presidente nem o teor da reportagem. O que está em jogo é saber se o presidente, qualquer um, tem o direito de julgar e decretar uma reportagem, qualquer uma, ofensiva (ou prejudicial) a ele e ao país, e, de imediato, emitir a sentença de expulsão do jornalista responsável. Porque se o presidente pode isso, então também pode tirar de circulação um jornal ou revista e fechar o sinal de uma rádio ou tevê. E se o presidente, qualquer um, pode isso tudo, então estamos longe de uma efetiva democracia. Conclusão: está equivocada toda a argumentação apresentada pelo presidente Lula e seus assessores. O presidente sentiu-se pessoalmente ofendido? Que recorra à Justiça, aqui e nos Estados Unidos. Atenção, mais uma vez: só os tribunais podem decidir se houve ou não ofensa. Por mais injuriado que esteja o presidente –e até se compreende que se sinta assim – ele não tem o poder legal nem político de decidir que houve ofensa. Muito menos o presidente do partido que o apóia. Vale para qualquer cidadão chamado de bêbado. Não gostou? Aos tribunais. Também não serve para nada dizer que o governo não cometeu nenhuma ilegalidade e que apenas utilizou seu direito de conceder ou negar vistos. Jornalistas brasileiros precisam de registro profissional no Ministério do Trabalho. Mas está claro que o governo não pode negar o registro por discordar dos termos de alguma reportagem. Ou seja, há poderes legais que não podem ser utilizados se a alma do regime é a democracia. Não esquecer: regimes autoritários tomam suas decisões com base nos chamados “instrumentos legais”, como o AI-5. O que importa é o espírito da lei e o modo como foi introduzida. Por isso mesmo, nos regimes efetivamente democráticos os tribunais têm a atribuição de decidir sobre a aplicabilidade (ou não) das leis. Mas além da questão das ofensas pessoais, o presidente e seus assessores têm dito que a reportagem do New York Times foi um ato deliberado para atingir a liderança emergente de Lula. Ou, como o próprio Lula disse a um grupo de senadores, uma reação dos grandes do mundo ao fato de seu governo estar “mudando a geografia comercial do planeta”. É o outro de uma mesma moeda. O presidente e seus assessores revelam um sentimento autoritário (e, o que dá no mesmo, uma enorme falta de compreensão sobre o que seja o espírito da democracia e das leis), quando se colocam no papel de julgar e condenar jornalistas. Quando dizem que a reportagem de Larry Rhoter é instrumento de uma conspiração internacional contra o governo do PT, revelam o reverso do espírito autoritário, que é a visão conspirativa da história, tão própria da velha esquerda. Por ela, Lula e o governo do PT ameaçam o imperialismo americano, que reage colocando em ação os seus instrumentos, entre os quais o New York Times. É dessa visão, por exemplo, que decorre a tese segundo a qual a Alca é uma tentativa dos EUA de anexar a América Latina. É difícil argumentar contra essas visões ideológicas, mas alguns fatos e certas perguntas podem pelo menos dar o que pensar. A revista Time, igualmente americana, recentemente relacionou o presidente Lula entre as 100 personalidades do século, numa reportagem respeitosa e até elogiosa. O PT, aliás, não perdeu tempo em alardear o fato. E o governo citou a menção na nota de protesto contra a reportagem do NY Times. Pergunta-se: por que o NY Times estaria na conspiração e não a Time? A revista pertence à Warner, uma multinacional da mídia. O jornal pertence a uma família e, aliás, é considerado um veículo liberal lá nos EUA, adversário do governo Bush (e da guerra). No cenário econômico internacional, o governo brasileiro tem se destacado pela forte luta contra os subsídios pagos pelo governo americano aos seus agricultores. Essa é uma das vias pelas quais Lula acredita estar mudando a geografia comercial do mundo. Ora, uma das melhores reportagens recentes sobre os danos que os subsídios causam à economia americana e mundial saiu justamente no NY Times. Mostrou, inclusive, como um pequeno grupo de grandes proprietários absorve a maior parte desses subsídios. Ocorre que o NY Times tem uma posição geral favorável ao livre comércio internacional e, por isso, uma visão mais positiva sobre a Alca. Portanto, quando o governo Lula combate os subsídios agrícolas internacionais encontra no NY Times um aliado. Quando rejeita a Alca, se separam. Mas é um enorme equívoco pensar que a Alca está no plano conjunto dos EUA. Começa que, hoje, se o projeto da Alca fosse colocado em votação no Congresso americano, seria derrotado. Prevalecem no momento os interesses protecionistas das empresas e dos sindicatos de trabalhadores que se sentem ameaçados com o que chamam de invasão dos produtos baratos fabricados na América Latina. Ou seja, entendem que a Alca é o triunfo da AL, uma conspiração contra os EUA, para usar os termos do pessoal petista. Para esses setores americanos, Lula não é uma ameaça, mas um excelente aliado na oposição à Alca. Além disso, os mercados financeiros, suposto braço do imperialismo, têm apreciado muitíssimo o governo Lula. Não estão nem aí com essa história de mudar a geografia comercial. Mas isso é tema da próxima segunda.

 

Publicado em O Estado de S.Paulo, 17 de maio de 2004

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