O BRASIL ATRASADO

. A mudança que conta Que há algo muito errado com a economia brasileira, isso é evidente. Basta comparar com os demais países emergentes. Eles crescem mais depressa que o Brasil e com inflação menor. Enquanto por aqui a taxa real de juros raramente fica abaixo dos 9% ao ano, lá nos outros essa taxa roda na casa do 1% e, frequentemente, é negativa, como ocorre, no momento, na Coréia do Sul. E outra coisa importante: a carga tributária deles é menor. Fica difícil, portanto, para as empresas e os consumidores brasileiros. Como investir e gastar com tantos impostos e juros? Como chegamos a esse ponto? O debate, por certo, não é de hoje. Mas talvez haja uma novidade: é possível que a conversa esteja ficando um pouco mais clara, com a eliminação de falsas respostas. E com a compreensão, penosa compreensão, aliás, de que a solução é complexa e exige uma série enorme de medidas, ao longo de vários governos. Comecemos pelo arranjo macroeconômico básico. O Brasil não está mal nisso. Segue as regras que todos os países respeitam e que se assentam em um tripé: a inflação tem que ser baixa e controlada; o governo tem que controlar suas despesas e, no geral, gastar menos do que arrecada; as contas externas precisam estar equilibradas, com um bom volume de comércio exterior (exportações mais importações). Este último quesito é o mais complicado. Alguns recomendam taxa de câmbio flutuante, outros sugerem flutuação suja, com o governo de algum modo garantindo que a moeda nacional fique desvalorizada o suficiente para estimular as exportações. Por ora, podemos passamos ao largo disso, pois a coisa aqui se resolveu meio que sozinha. Vindas de fora, crises sucessivas das contas externas brasileiras levaram à desvalorização do real e a um enorme impulso das exportações. Em três anos, o país passou de déficit a superávit comercial anual de mais de US$ 30 bilhões, que, no mundo emergente, só perde para a Rússia – a qual, entretanto, não tem mérito nenhum. Tem petróleo abundante e a 50 dólares o barril, qualquer um ganha dinheiro. O Brasil também tem ido bem no quesito preços. Pratica-se aqui o regime de metas de inflação, utilizado em grande parte dos países considerados sérios. A discussão, hoje, está em torno de se fixar uma meta de 5% ou 6,5% ao ano – o que mostra inflação sob controle. E nas contas públicas, o governo gasta menos do que arrecada, fazendo, portanto, economia para pagar parte da conta de juros. Embora lentamente, o endividamento público está caindo. E então, por que juros e impostos continuam tão elevados? Uma primeira resposta pode estar no atraso com que o país construiu e consolidou sua estrutura macroeconômica. O controle da inflação tem apenas dez anos (do Plano Real). Foi só a partir de 1999 que o setor público começou a gastar menos do que arrecada e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que consolida o controle das contas governamentais, é ainda mais recente. Finalmente, o ajuste das contas externas é de ontem. Atrasos nunca são neutros. Anos de inflação e descontrole cavaram buracos e criaram esqueletos que elevaram a dívida pública a níveis exagerados, mais de 50% do Produto Interno Bruto, mais do dobro do que se verifica no México, Coréia ou China. Exemplo prático das consequências: em 1997, a Coréia foi o primeiro país importante a cair com a crise financeira internacional. Ficou sem condições de honrar seus pagamentos externos, precisou do pacote de ajuda do FMI, como o Brasil também precisaria. A recessão foi muito forte na Coréia, mas o governo era superavitário nas suas contas internas e tinha dívida baixa. Assim, o setor público pode gastar pesadamente para contrabalançar os efeitos da recessão e compensar a falta do investimento privado. Os juros foram mantidos baixos e o comércio externo coreano já apresentava sólida estrutura. A máquina de exportação fez rapidamente o serviço de arrecadar os dólares necessários para reequilibrar as contas externas. Já aqui, quando veio o choque externo, o governo, altamente endividado, não podia expandir seus gastos. Os juros tinham que ser mais altos – pois os investidores locais e estrangeiros exigiam isso para financiar o governo e trazer dólares. As exportações mal começavam a deslanchar. Além disso, o governo precisou aumentar os impostos para financiar seus gastos correntes, especialmente com previdência. Enormes diferenças, portanto. Se o governo brasileiro gasta 40% do PIB, o da Coréia não passa dos 25%. O Brasil gasta quase 12% do PIB com previdência, a Coréia mal passa dos 6%. Eis o nosso problema: o arranjo nas contas públicas veio quando gastos e endividamento já eram muito elevados. A inflação acabou quando as sequelas já pesavam. E as contas externas recém se equilibram. Por isso dá essa sensação de que não adiantou nada. Durante anos, a agenda brasileira se concentrou na macroeconomia (inflação, contas públicas e contas externas). Imaginava-se que o país dispararia a crescer tão logo se encaixasse o arranjo correto. Como não acontece – toda vez que a economia começa a crescer a mais de 5% ao ano, dá uma trombada em inflação e juros – isso tem levado pessoas a desprezar o arranjo. Ora, se o país não cresce sem inflação, por que não soltá-la de novo? Ou, por que não liberar o gasto público, já que o controle não deu em nada? A resposta é olhar ao lado. Os outros estão crescendo mais que a gente, com inflação menor e gasto público menor. A lição a tirar é justamente a contrária. O país precisa, por exemplo, de um brutal esforço de contenção do gasto público. Mais e não menos responsabilidade fiscal. A novidade hoje é que o principal partido da esquerda aderiu ao bom arranjo macroeconômico. É o governo do PT que controla a inflação e aumenta o superávit das contas públicas. É para comemorar: déficit público e inflação não são mais de esquerda ou de direita, são o que são em qualquer outro país, problemas, defeitos, equívocos. E assim a tese do crescimento via inflação/gasto público/calote tornou-se minoritária na esquerda e na direita. O que abre espaço para o debate sobre a agenda que nos falta. Nessa conversa sobre como reduzir juros, surgem propostas novas, como o já citado corte de gastos, teses como a da insegurança jurídica e jurisdicional e o encaminhamento de reformas do setor público e da agenda micro, com garantias ao investimento privado, proteção do crédito, facilitação de negócios e assim por diante. Que boa parte dessa agenda tenha o patrocínio do governo do PT, eis outra mudança que convém ressaltar. Essa agenda e as novas idéias são tema de próximos artigos. Desde já, porém, é preciso ser realista. O caminho começa a aparecer. É bom. Mas já se vê que é difícil e longo. Sobretudo para quem parte atrasado. Publicado em O Estado de S.Paulo, 01/11/04

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