NÃO EXISTE O PROBLEMA DA FOME

. Não são famintos, são gordos É preciso escrever com todas as letras: não existe o problema da fome no Brasil. Essa é a conclusão inevitável da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE. Em um universo de 95,5 milhões de pessoas de 20 anos ou mais, diz a pesquisa, foram encontradas 3,8% com déficit de peso. Isso significa que a ?população adulta brasileira não está exposta ao risco da desnutrição?, pois taxas entre 3% e 5% de pessoas abaixo de peso estão dentro da ?proporção esperada de indivíduos que são constitucionalmente magros?. Repetindo, portanto, não existe o problema da fome no Brasil. Trata-se de uma extraordinária notícia para qualquer país. Por que, então, foi tão pouco celebrada por aqui e até posta sob suspeita, como fez o presidente Lula? Resposta simples: por que se trata de uma daquelas verdades científicas que arrasam ideologias, crenças, mitos e teses políticas baseadas em slogans. Às vezes, essas ideologias e crenças tornam-se tão dominantes na cena política que mesmo aqueles que sabem ou desconfiam da farsa sentem-se incomodados ou com medo de desmascará-la. Pega mal, não é politicamente correto. Vamos repetir, portanto, o que diz o IBGE: ?a população adulta brasileira não está exposta ao risco da desnutrição?. Há 30 anos, o problema existia. Hoje, porém, depois de sucessivas políticas e programas, o país está muito próximo de ter erradicado a fome. Não se trata mais de uma emergência, nem de uma questão estrutural. Há pessoas com fome, especialmente no Nordeste, mas em número muito inferior, por exemplo, ao de pessoas com excesso de peso. De novo, o IBGE: naquele universo de 95,5 milhões de pessoas, foram encontradas 40% (38,8 milhões) com excesso de peso, dos quais 10,5 milhões são obesos. Há mais obesos do que famintos, sendo o que o crescimento da obesidade é mais rápido nas populações mais pobres. Eis aí, números que não mentem: 3,6 milhões de adultos abaixo do peso e 38,8 milhões de gordos. Era, portanto, apenas um slogan a afirmação de que o Brasil ?tem 53 milhões de famintos?, como Lula repetia durante a campanha eleitoral. Disso saiu um equívoco de política pública, o Fome Zero. Este, na sua versão original, incluía a exigência de que o beneficiário comprovasse gastos com a compra de alimentos. Errado e inútil. O problema real não estava ali, estava na pobreza, que é diferente do problema da fome. Por isso, é muito superior a idéia das bolsas, uma renda entregue à pessoa em troca de contrapartidas, como manter as crianças na escola, ter as vacinas em dia, as mães regularmente nos postos de saúde e assim por diante. A renda, para ser usada no que a família julgar mais importante, de roupas a material escolar ou um aparelho de tevê, além de comida, reduz a pobreza imediatamente. As contrapartidas, como a educação escolar, combatem a pobreza estrutural, no médio prazo. Fica, assim, evidente, o tamanho do equívoco do ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, de suspender a exigência das contrapartidas e justificar isso com o argumento de que o mais importante era matar a fome. Errado, muito errado. É muitíssimo mais importante garantir a presença na escola, pois está provado que quanto mais escolaridade, menos pobreza. É certo, por outro lado, que se pode discutir o estudo do IBGE. Mas não com base na absoluta ignorância revelada pelo presidente Lula quando comparou a Pesquisa de Orçamentos Familiares com pesquisas do Ibope ou Datafolha, que fazem perguntas aos entrevistados. Segundo Lula, as pessoas teriam respondido que não passam por fome por vergonha de admitir sua verdadeira condição. Mas o pesquisador da POF não pergunta se a pessoa tem passado fome. Ele acompanha a família pesquisada por vários dias, vai junto às compras, checa o que se compra e o que se consome e, finalmente, mede e pesa as pessoas pesquisadas. Também pergunta e as respostas mostram que o presidente Lula está de novo equivocado. Mais de 40% das pessoas dizem que não comem na quantidade suficiente. Não têm vergonha de admitir o problema. Na verdade, os técnicos que lidam com esses temas dizem que acontece o contrário ? os entrevistados pintando um quadro pior do que efetivamente é. Ou seja, em famílias com pessoas acima do peso reclama-se da falta de mais comida. Isso vale para o país. De um modo geral, nós nos vemos piores do que efetivamente somos. Quando alguns analistas das questões sociais disseram que o Brasil não é um país pobre, foram acusados de neoliberais ou de elite insensível. Mas o Brasil, considerada a renda per capita, medida no sistema da Paridade do Poder de Compra, está no grupo dos 30% países mais ricos. Com a última pesquisa do IBGE, pode-se dizer que o Brasil não é miserável, nem faminto. É, entretanto, um país com muitos pobres e uma desigualdade incompatível com o nível de renda do país. Isso é um enorme problema a resolver, mas muito diferente e, de certo modo, mais fácil, do que fome e miséria. Exige uma agenda diferente, na qual o Fome Zero está longe de ser prioridade. Disso tudo resulta uma questão política interessante: como o presidente Lula pode ter obtido tanto apoio aqui e no exterior com base em uma agenda equivocada? E outra: estando o presidente mudando sua agenda, qual o risco de perder seu prestígio? Assunto para outra conversa. Em tempo: a POF pesquisou a situação da população adulta. Falta uma pesquisa específica sobre as pessoas abaixo dos 20 anos. Mas parece improvável que crianças cronicamente desnutridas tenham se tornado adultos acima do peso. De onde vem outro em tempo: ao contrário do que diz o governo Lula, que desde o Descobrimento as elites deixaram o povo à míngua, as questões da pobreza no Brasil vêm sendo enfrentadas há décadas e com razoável sucesso. A situação hoje é muito melhor. O governo do PT já faria muito se não estragasse os bons programas. Publicado em O Estado de S.Paulo, 27/12/2004

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