. Transtorno bipolar
Não havia necessidade de uma entrevista formal para comunicar que o Conselho Monetário Nacional fixara em 4,5% a meta de inflação de 2007, repetindo a de 2006. A decisão saíra como o esperado e cabia bem na lógica da política econômica. Assim, a longa entrevista que o ministro Antonio Palocci resolveu conceder, na última quinta, só podia ter outro objetivo: levar uma palavra de tranqüilidade no auge da crise política e dizer que o governo não cogitava de, digamos, manobras econômicas para sair do buraco.
Precisaria ter dito isso?
Ele, ministro, não. Pelo que tem feito, o que se espera dele é mais ortodoxia ou perseverança na linha adotada ainda mesmo antes da posse.
Mas como o presidente Lula estava recebendo o apoio do chamado movimento social ? designação genérica que inclui do MST à CNBB, passando pela CUT ? e como diversas lideranças do PT sustentavam a tese de que o governo era alvo de uma tentativa de desestabilização das chamadas elites, isso exigindo uma espécie de volta às origens esquerdistas, com mudança da política econômica, lá se foi o ministro Palocci a dizer que problemas políticos se resolvem na política, não na economia.
O episódio, de todo modo, foi mais uma manifestação do transtorno bipolar de que padece o governo. Ficou evidente o contraste entre o retorno de José Dirceu ao Congresso ? cercado por uma claque de militantes, bandeiras em punho, gritaria de slogans e conflitos ? e a pacata entrevista de Palocci.
O presidente Lula certamente acha que se equilibra bem e tira proveito dessa situação. Recebeu o movimento social, deixou que o pessoal estendesse bandeiras no salão presidencial, ouviu argumentos pela mudança radical da política econômica e da política de alianças, dispensando-se as elites neoliberais e conservadoras, para reagrupar o governo à esquerda.
Um dia depois, nos mesmos salões presidenciais, Lula oferecia mais ministérios ao PMDB, um partido cuja ideologia é difícil de definir mas que com certeza não cai no campo da esquerda socialista. Qual será a idéia de Lula? O movimento social fazendo barulho na rua e as elites ?neoliberais e conservadoras? governando no ministério?
A estratégia de utilizar movimentos populares para fazer pressão não é nova. Hugo Chávez, por exemplo, a amplamente. Mas a idéia por trás dessa prática, definida pelas esquerdas latino-americanas, diz que a instituições ?burguesas? nunca tomam decisões a favor do povo. Portanto, é preciso que o povo, organizado em movimentos, exerça pressão nas ruas para obrigar as elites que dominam as instituições a tomarem medidas ditas populares. Na Venezuela, Chavez levou a idéia ao limite, desfez as instituições tradicionais e colocou gente sua nas novas. Na Bolívia, ainda se está na fase de apertar o Congresso.
Aqui no Brasil, muitas lideranças que se encontram no campo pró-Lula advogam coisa parecida. O presidente recebeu o movimento social, seus companheiros de estrada. Mas o que vai fazer com eles, se, ao mesmo tempo, busca ampliar as alianças ao centro e à direita na reconstituição de seu governo e de sua base parlamentar?
Ou ainda: qual a estratégia do presidente ao receber o pessoal que combate a política econômica e, no dia seguinte, mandar o ministro Palocci defender essa política em entrevista? Além disso, Lula aprovou a definição da apertada meta de inflação para 2006 e 2007, rejeitando assim as propostas de companheiros favoráveis a mais tolerância com a inflação e mais gastos públicos.
O mercado ou, se quiserem, as elites econômicas acreditam que o verdadeiro governo Lula é o do ministro Palocci. Aqui e no exterior, não há a menor suspeita de mudanças de curso na política econômica. A prova? Basta olhar os indicadores internacionais do risco Brasil. Nenhuma alteração significativa nessas semanas que devem ter sido as piores para o governo.
E a verdade é que a política econômica segue rigorosamente seu rumo, inclusive passando por cima de críticas de setores empresariais importantes ? elites, não é mesmo? – inquietos com os juros altos e o dólar baixo.
O que exige ver a questão do outro lado: será que os movimentos sociais que foram a Lula na semana passada e mais a esquerda petista ainda acreditam que a política econômica pode mudar? Devem acreditar, porque senão o que ainda estariam fazendo no governo?
No início da administração Lula, quando se fazia essa pergunta aos militantes, ouvia-se a resposta: este é um governo em disputa. Será que ainda alimentam alguma esperança de vencer a disputa?
Para esse pessoal à esquerda, o governo Lula tem, a rigor, um único mérito, a política externa considerada independente. Há os programas sociais, mas isso é visto com alguma desconfiança, pois vem do governo FHC e parece um tipo de caridade, não de mobilização, por exemplo.
E Lula, que papel reserva ao movimento social e à sua ala esquerda? O que pretende entregar a essa turma?
Uma resposta pode estar no caso do MST. Seus líderes condenam a política econômica em geral, detestam a presença de representantes do agronegócio no governo (os ministros Roberto Rodrigues e Luiz Furlan), acham que a reforma agrária vai mal, mas ficam por ali. Recebem cada vez mais verbas públicas e seus membros ocupam cada vez mais postos no Ministério do Desenvolvimento Agrário e no Incra.
Já o movimento sindical, por exemplo, foi contemplado com a proposta de reforma que o governo encaminhou ao Congresso.
Talvez seja a estratégia de Lula: mantém o curso básico da política econômica, mas entrega uma política externa aqui, o Incra ali, a reforma sindical.
Mas a política externa produz quase nada além de discursos. Nem é firme a solidariedade com Chavez e os movimentos sociais da Bolívia. Lá na Bolívia, curiosa ironia, nós somos imperialistas.
De outro lado, o pessoal ocupa o Incra, mas a reforma agrária continua limitada pelo superávit primário de Palocci. E a proposta de reforma sindical, que dá mais poderes aos sindicatos, tem escassas chances de ser aprovada pela base parlamentar do governo.
E aí, tudo bem? O movimento social e as esquerdas fingem que acreditam e o presidente finge que entrega?
O fato é que essa bipolaridade tem custos. No mínimo, gasta energia do governo. No médio, gera confusão. No máximo, vai acabar tirando votos de Lula. Publicado em O Estado de S.Paulo, 27 de junho de 2005