LUTA INTERNA ATRASA O GOVERNO

. Emoções custam caro Tem sido assim há anos: o Congresso Nacional recebe a proposta orçamentária preparada pelo Executivo, turbina as receitas e inclui emendas prevendo investimentos em obras, como viadutos, estradas, açudes e assim por diante. Como o orçamento é uma autorização de gasto, não uma obrigação, o Executivo edita um decreto cortando boa parte do que o Congresso havia colocado e toca a vida, gastando conforme arrecada. O fato de o orçamento ser uma autorização de gasto é um estímulo à multiplicação de receitas e investimentos. Deputados e senadores sempre souberam que, ao fazer isso, não estavam estourando as contas públicas, pois o governo controlaria o gasto na execução orçamentária. As emendas ficariam ali à espera de dinheiro e, digamos, boa conjuntura política ou uma votação importante, quando se tornam moeda de troca. Mas como o PT continua na fase da “primeira vez na história”, suas lideranças, incluindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alardearam que o orçamento de 2004 seria realista, não ficção, mas uma peça exata a ser realizada sem cortes e com investimentos R$ 7,8 bilhões, mais do dobro do realizado no ano passado, para desta vez estimular o crescimento econômico. O Congresso seguiu na sua. Acrescentou R$ 11 bilhões nas receitas e aprovou emendas prevendo mais R$ 4,5 bilhões para investimentos. O relator do projeto de orçamento, deputado Jorge Bittar, pré-candidato do PT à prefeitura do Rio, garantia que os cálculos estavam corretos, contando nisso com o apoio de ministros ilustres, como José Dirceu e Guido Mantega, este titular do Planejamento, justamente o órgão encarregado de preparar a peça orçamentária. Os demais ministros manifestavam a certeza de que desta vez executariam integralmente os gastos e investimentos previstos – já que não estavam mais trabalhando com a “herança maldita”. Criou-se assim uma enorme expectativa – e um enorme problema para o Ministério da Fazenda, cujas contas simplesmente não batiam com as do Congresso. Nascia aí mais um dos embates internos do governo petista, confirmando uma das frases prediletas do ministro Antonio Palocci, a de que no PT nada se faz sem emoções. No começo dos debates, o pessoal da Fazenda falava em cortar R$ 8 bilhões. Como os demais ministros falavam em corte zero, parecia que afinal sairia uma redução de R$ 4 bilhões, isso seguindo a fórmula do meio a meio que já parece ser uma característica do governo. De fato, na véspera da reunião ministerial do dia 6, quando o número seria anunciado, fontes variadas do governo, inclusive da Fazenda, confirmavam que seriam R$ 4 bilhões. O número estava em todos os jornais do dia 6, uma sexta-feira, final de uma semana de intenso nervosismo no mercado financeiro, causado, no front interno, justamente pelo “fogo amigo”, como o pessoal do governo chama o debate interno. O boato maior foi o de demissão do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, hipótese totalmente infundada, mas que prosperou por algum tempo por vários motivos: o presidente Lula havia escanteado a proposta de autonomia do BC, considerando-a coisa de acadêmicos enquanto Meirelles a definira como essencial; os ataques ao BC pela não redução dos juros em janeiro; o bate-boca em torno do orçamento, com muita gente do governo dizendo que estava na hora de reduzir a meta de superávit primário (a economia nas contas do governo para pagar juros) que havia sido acertada com o FMI. Aliás, na mesma semana, a CUT inaugurou seu programa de televisão semanal pedindo exatamente mais gasto público e menos FMI, tudo com a presença de Lula e de cardeais petistas. Em resumo, mais uma vez, o ambiente era de contestação à política econômica aplicada por Palocci e Meirelles. E o resultado, mais uma vez, foi a reafirmação solene dessa política. O corte no orçamento foi para R$ 6 bilhões, informando-se que se vai gastar o que se arrecadar. O superávit primário de 4,25% do PIB foi mantido e Meirelles, não sendo ministro, participou da reunião com o presidente, sendo encarregado da exposição inicial sobre o cenário econômico. Acrescentem-se aí algumas frases de Lula – “não quero fazer nenhuma aventura descabida” (em política econômica), “emprego só com crescimento” (defendendo-se das críticas da CUT) – e o episódio terminou com o mercado celebrando o que considerou mais um triunfo da linha justa do companheiro Palocci. Quatro dias depois, missão do FMI chegava a Brasília para uma pacífica verificação do acordo. No essencial, portanto, foi como sempre. O Congresso esticou o orçamento, o Executivo contingenciou, vai gastar conforme arrecadar e tem na gaveta as emendas parlamentares para liberar. Na forma, foi um barulho danado, as emoções de que fala o ministro Palocci. Acontece que essas emoções não saem da graça. O ano havia começado tão bem que o ministro da Fazenda aproveitara para decretar o fim da crise e anunciar o início do processo de crescimento. A agenda agora, disse, sai do macro e vai para a microeconomia, conjunto de medidas destinadas a melhorar o ambiente de negócios. Vã esperança. Perdeu-se o mês no “fogo amigo”, o mesmo debate macro em torno do suposto Plano B que nunca aparece. Fica a mesma política econômica, mas pedaços se perdem pelo caminho. A autonomia do BC, por exemplo. Estudos mostram que nos países em que há essa autonomia formal, na lei, os juros tendem a ser mais baixos. Não é, portanto, coisa de acadêmicos. O projeto faz parte da agenda micro e deveria ir ao Congresso neste ano, pelo menos depois das eleições. Mas a ampla maioria do bancada do PT, ainda engasgada com o corte no Orçamento, especialmente das emendas parlamentares, não quer saber disso. A bancada também não quer discutir reforma trabalhista, porque pretende se concentrar na criação de empregos. Mas a reforma, reduzindo as exigências trabalhistas para as pequenas e médias empresas, é justamente para criar empregos formais. De outro lado, o ministro Palocci tem assegurado que a mudança na Cofins (que passou de 3% sobre o faturamento para 7,6% do valor adicionado) é neutra, isto é, não aumenta a carga tributária, embora possa redistribuí-la desigualmente entre os diversos setores. E haveria tratamento especial aos que sofressem forte aumento da carga. Ora, a receita da Cofins é a variável chave do orçamento. Foi aí que o Congresso aumentou as receitas. Ao cortar, o governo, para não perder o discurso, está garantindo que, confirmado o ganho de receita, todos os gastos e investimentos serão restabelecidos. E onde fica a garantia de que, havendo exagero ou excesso na mudança da Cofins, isso seria resolvido via redução do imposto? Outra contradição ficou visível. Para não prejudicar os sonhados investimentos públicos, as lideranças do governo estão dizendo que os cortes devem se concentrar no custeio. Mas como conciliar isso com os planos recém anunciados de contratar quase 50 mil novos funcionários? O “fogo amigo”, como se vê, não é só de palavras. Parte do governo age na direção contrária à da política econômica central. A Fazenda fala em melhorar o ambiente para o investimento privado. E sai um modelo para o setor elétrico que os investidores privados consideram equivocado. Sai uma lei de biossegurança que desagrada ao mesmo tempo ambientalistas, cientistas e agricultores e pode paralisar setores importantes. E, finalmente, o debate necessário sobre a redução das taxas de juros acaba contaminado pela ideologia e, não raro, levando o BC a atitudes defensivas. O “fogo amigo” não é de festim. Publicado na revista Exame, edição 811, data de capa 18//02/2004

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