–Uma onda mundial favorável aos paises emergentes, uma economia preparada para surfar, eis a combinação que formou o governo Lula—
O desempenho do governo Lula resulta de uma oportuna combinação de estabilidade macroeconômica interna com um período de extraordinária expansão mundial. Como ocorreu com diversas outras economias emergentes e produtoras de minérios e alimentos, o Brasil surfou numa onda global alta e longa.
O período 2003/08, até antes da crise financeira, não foi apenas um bom momento. Foram anos dourados. O produto mundial cresceu a uma média perto de 5% ao ano, beneficiando todas as regiões, praticamente todos os países. Até a África, que sempre ficava para trás, cresceu no ritmo de 6% ao ano.
Entre os países desenvolvidos, o Japão, depois de mais de uma década de recessão, chegou a crescer perto de 3%, número forte para uma economia já rica. A União Européia, normalmente travada por impostos e custos elevados, alcançou a marca de 3% entre 2006 e 07. Os EUA emplacaram três anos seguidos com expansão acima dos 3%. E a China bateu todos os seus recordes: média de 10% nos seis anos de ouro, nada menos que 13% de expansão no grande momento de 2006.
Foi também um momento de globalização e abertura dos mercados. Isso vinha acontecendo desde o final dos anos 80, quando desabaram os regimes socialistas. Os países ex-comunistas foram absorvidos pelo capitalismo e o mundo dos negócios se ampliou.
As tarifas de importação e as restrições ao comércio, que vinham caindo desde os anos 90, chegaram aos níveis mais baixos no início do século 21. Com isso, o volume de bens e serviços transacionados no mundo subiu 7,6% ao ano, sempre no período 2003/08. E isso porque a crise financeira, que teve seu auge no final de 2008, derrubou a média.
Mas esse movimento comercial teve uma característica especial: os países ricos foram mais importadores (a começar pelos EUA) e os emergentes, mais exportadores. Os números do FMI mostram claramente: as vendas externas destes países aumentaram na base de 10,5% ao ano.
E aumentaram mais as vendas das nações que tinham comodities e alimentos para entregar no mundo, mas muito especialmente na China. Com seu ritmo extraordinário, a China, do final do século passado para cá, tornou-se uma ávida importadora de petróleo, alimentos e minérios, entre outros produtos.
Alguns poucos exemplos mostram o peso da China no comércio mundial. Em poucos anos, o país passou de exportador de petróleo ao segundo maior importador. A China é a maior produtora mundial de minério de ferro ? e também a maior importadora. Grande produtora de alimentos ? e uma das principais importadoras de soja, por exemplo. No início da recente arrancada, os chineses comiam algo como dez quilos de carne per capita/ano. Hoje, 50 ? quantidade que o país não consegue produzir.
Em resumo, a demanda por esses produtos, em alta com o crescimento mundial, recebeu um reforço poderoso dos compradores chineses. Resultado: os preços de minérios, incluindo o de ferro, subiram mais de três vezes entre 2003 e a véspera da crise. Os preços de alimentos simplesmente dobraram, na cotação em dólares. Também subiram, embora em escala menor, as cotações das comodities agrícolas, como etanol e biocombustível.
Todo esse movimento beneficiou especialmente o Brasil. E aqui não foi apenas sorte. O mundo precisou de minério de ferro ? e a Vale, privatizada, se tornara uma companhia global com tecnologias de ponta e ampla capacidade de produção. O mundo precisou de alimentos, e o agronegócio brasileiro, também com sua tecnologia e produção crescente, atendeu esse mercado.
Isso encaixou a base que faltava para a estabilidade macroeconômica do país. Depois do controle da inflação com o regime de metas (introduzido em 1999), do câmbio flutuante (janeiro de 1999) e do controle das contas públicas (com a Lei de Responsabilidade Fiscal e seus complementos, instituídos entre 1998 e 2000), o Brasil ainda sofria da chamada ?vulnerabilidade externa?.
Em poucas palavras, tratava-se da baixa capacidade de gerar dólares para pagar os compromissos externos. A todo ano, o Brasil (governo e empresas) precisa ir ao mercado internacional para tomar emprestados valores de até US$ 50 bilhões para fechar as contas externas. Qualquer crise, os bancos se fechavam, o Brasil quebrava, ou seja, tinha de ir ao FMI.
A virada se deu nos anos dourados. As exportações brasileiras, empacadas há décadas na casa dos US$ 50 bilhões/ano, simplesmente saltaram para quase US$ 200 bilhões em 2008. Como as importações cresceram menos, o país gerou superávits comerciais de mais de US$ 40 bilhões ao ano ? uma verdadeira enxurrada de dólares.
O país passou para o problema contrário: excesso de dólares. Em 2003, o Banco Central anunciou sua disposição de comprar no mercado todo o excedente. Com isso, as reservas do governo brasileiro saltaram de US$ 34 bilhões em 2002 para US$ 196 bilhões em 2008.
Foi o mais importante seguro contra a crise financeira, quando os bancos mundiais, à beira do colapso, simplesmente pararam de emprestar. Na secura total do mercado, o BC brasileiro dispunha, então, de dólares para financiar a economia e as companhias locais. O país se tornara credor em dólares, depois de uma vida inteira como devedor.
Eis a feliz combinação: a boa onda global chegou quando o Brasil consolidava a estabilidade macroeconômica. Esta, de sua vez, alavancou a outra perna do desenvolvimento local: com o real estável e forte, o crédito voltou à economia brasileira. O dinheiro emprestado para empresas e pessoas saiu de 22% do PIB, em 2003, e está alcançando os 50%. Voltou inclusive, ainda que limitadamente, o crédito para a casa própria ? crédito de 30 anos, que só aparece quando há uma convicção generalizada de que a estabilidade é consistente.
O presidente Lula gosta de se atribuir esses bons resultados. De fato, é seu mérito ter mantido a política econômica herdada de FHC, além de acrescentar reformas microeconômicas, como nas áreas de crédito (o consignado, por exemplo) e seguros, que melhoraram o ambiente de negócios.
Mas não se pode deixar de notar que todos os países emergentes tiveram desempenho muito semelhante. Basta olhar em volta, aqui na América Latina: Chile, Peru, Colômbia, todos aumentaram suas exportações, especialmente para China, hoje a principal parceira comercial da região. Todos ? gatos escaldados com as crises externas ? tiveram a mesma idéia de acumular reservas com os dólares das exportações.
De fato, as reservas de todos os emergentes (menos China) saltaram de US$ 740 bilhões para US$ 3,0 trilhões em 2008, um aumento de quatro vezes. As brasileiras se multiplicaram por cinco, um pouco melhor.
Pelos mesmos motivos, não se pode dizer que o crescimento das exportações se deve à diplomacia Sul-Sul do presidente Lula. Todos os emergentes registraram o mesmo crescimento. Na verdade, alguns foram até mais hábeis e assinaram diversos acordos comerciais bilaterais, enquanto o Brasil ficou empacado pela ideologia e pelas restrições do Mercosul.
O Brasil também teve desempenho pior em dois quesitos cruciais, investimento e crescimento.
No período 2003/08, os emergentes, inclusive China, investiram, na média, o equivalente a 28,5% do PIB. Os latino-americanos investiram 22,5%. O Brasil, apenas 16,9%. Não por acaso, a média anual de crescimento dos emergentes foi de 7,2%, contra 4,8% da América Latina e apenas 4,2% do Brasil.
E aqui se vê o que o governo de Lula deixou de fazer ou fez mal. Seu governo começou pressionado por uma crise de confiança e, por isso, ancorou-se num exagero de ortodoxia econômica. O Banco Central subiu os juros em suas duas primeiras reuniões e o Ministério da Fazenda, arrochou as contas públicas para elevar o superávit primário e chegou a preparar um plano de longo prazo para reduzir o peso do estado na economia. Foi uma satisfação ao mercado, que a aceitou.
Ainda no embalo da ortodoxia, o governo Lula aprovou no Congresso uma mudança constitucional que permitiria a reforma da previdência do setor público ? uma poderosa fonte de déficits.
Mas aí, o mundo ajudou, as coisas começaram a melhorar, o dólar despencou dos R$ 3,50 (cotação de crise) para menos de R$ 1,60 (o que ajudou a matar a inflação e a baratear o consumo das classes médias).
Lula relaxou. Esqueceu a reforma da previdência pública, deixou na gaveta o projeto de impor limites ao gasto público e foi à farra. Aumentou os gastos, mas especialmente em custeio, pessoal, previdência e programas sociais. Deu um impulso nos investimentos, mas claramente insuficiente. Nos melhores momentos, o investimento total (público e privado) não chegou a 19% do PIB. O investimento público em infra-estrutura (estradas, portos, aeroportos, rodovias, etc.) mal alcança 1,5% do PIB.
A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) caiu bem, de 55% do PIB para os atuais 40%, um resultado expressivo, mas os emergentes relevantes ficam na casa dos 30%. A Dívida Bruta caiu menos, mas caiu para os 60% do PIB ? e o padrão é 40%.
Finalmente, a carga tributária subiu e está nos 36% do PIB, cerca de 14 pontos acima dos emergentes que arrecadam mais.
Essa combinação de gasto público elevado ? e pouco em investimento ? carga tributária absurdamente alta e dívida pública pesada forma a pior herança a ser deixada por Lula: a taxa de juros brasileira.
O governo Lula conseguiu trazer a taxa real de juros dos 13% ao ano para os atuais 6%. Mas nos demais emergentes, fica entre 1% e 2%. O que eles têm de diferente? Gasto público menor, dívida menor, inflação menor e mais investimentos.
Lula poderia ter avançado por aí. Teve oportunidade, mas preferiu apenas surfar a boa onda, fazer propaganda e não se aborrecer com essas reformas complicadas.
Em tempo: na crise de 2008, os emergentes também tiveram história parecida, uma rápida recessão e sólida retomada.
Publicado no carderno especial de O Globo, em 19 de dezembro de 2010